Adolf Eichmann era um homem comum. Vinha de uma
sólida família, o pai e a madrasta eram protestantes convictos, foi um
rapazinho obediente e regular, fazia desporto e tocava violino. Na
adolescência, compensou a sua falta de brilhantismo sendo terrivelmente
trabalhador. Juntou-se às SS, casou, teve 4 filhos. Era tão dedicado ao
trabalho que chegou a tenente-coronel e ficou responsável pela logística de
deportação dos judeus para os campos de extermínio. Eichmann fez o que sempre
tinha feito: cumpriu as ordens excrupulosamente sem jamais as questionar. Ou
melhor: Eichmann nunca parou para pensar pela sua cabeça.
Ontem como hoje, há milhões de homens como Eichmann.
Não são pessoas repletas de maus sentimentos. Não são violentos, maldosos,
sádicos, invejosos, cheios de raivas secretas. São pessoas banais, quase
apagadas no tecido social. Mas obtêm, por sorte, ligações ou até por via do seu
esforço contínuo e burocrata, uma certa dose de poder. Como é perigoso colocar
poder nas mãos de quem não exerce pensamento próprio! Logo, esse inócuo
autómato sente necessidade de cumprir o seu dever e obedecer aos seus
superiores que nunca questiona. Daí resulta, como no caso de Eichmann, que um
eficiente funcionário do Estado, cumpridor assíduo da Lei, se torna num
monstruoso carrasco... mas nunca dá sequer por isso!
No seu julgamento em Israel nos anos 60, Eichmann
não negou o que fizera mas insistiu que era um simples executante de ordens, um
leal servidor do seu Estado – visto que as decisões não eram suas as
consequências das mesmas não podiam ser-lhe imputadas. Eichmann nunca sequer
pensou nas consequências; não era esse o seu papel, como referiu. Estava pois
“inocente relativamente às acusações”. É interessante notar que Eichmann nunca
negou as suas acções; o que ele nega é a sua consciência acerca das mesmas. A
finalidade dos seus actos é inquestionável – mas, para Eichmann, essa
finalidade nunca se colocou sequer...
Hannah Arendt, na época jornalista para o The New
Yorker a fazer a cobertura do extenso julgamento de Eichmann, fez notar como
era calmo e de aparência eficiente e bem inserida esse acusado, sem traços de
violência doentia ou distorções de carácter. Homem zeloso, não tinha por desejo
destruir, mas apenas fazer o que lhe competia. A questão que subjaz ao mal
presente em Eichmann e que o levou a cometer um genocídio é a sua absoluta
incapacidade de exercer a faculdade de pensamento. Eichmann não via para além do
cumprimento da ordem, não raciocinava sobre esta; em suma, não dialogava
consigo próprio sobre o curso das suas acções. A falta de auto-reflexão conduz
a que Eichmann não tenha capacidades nem humanas nem morais. Era uma espécie de
robot, que não unia causa a efeito e muito menos se colocava na pele alheia
para observar o caso do ponto de vista das vítimas.
Desta experiência, Arendt retirou conclusões que
modificariam profundamente o curso das suas próprias reflexões enquanto
teorizadora política e humanista. Ela concluiu que o mal não é uma categoria
abstracta, ontológica, metafísica. É, antes, algo absurdamente trivial, existe
no espaço concreto e manifesta-se sempre que um homem escolhe exercê-lo (ainda
que não pense nisso reflectidamente). O mal é uma escolha, pensada e muitas
vezes não pensada, que encontra espaço num poder, que tanto pode ser pessoal
como institucional. De facto, o mal é tão comum que pode até prosperar nas
pessoas (cor)rectas. Sobretudo quando essas pessoas passam pela vida serenamente
sem raciocinar.
... Só por curiosidade, Eichmann foi condenado por
crimes contra a Humanidade. O vazio de pensamento não constituíu desculpa para
a morte de milhões. As suas últimas palavras foram “Morro acreditando em Deus.”
Não havia dúvidas da sua culpa, mas – ainda assim – muitos foram os que se
emocionaram sinceramente com a sua morte. Como é estranho o tecido
humano...