Vejo comentários no Facebook – veículo sem fundamento, é certo - sobre a
miséria moral que é viver em países onde as mulheres e crianças não têm
direitos que lhes dêem equivalência a seres humanos. A minha questão não é
contradizer se em tais locais o azar de ser cronologicamente jovem ou
geneticamente feminino reduz as pessoas à condição de escravo – não sei porque
nunca lá fui, e a minha opinião será apenas uma opinião. A minha principal
questão é saber empiricamente das misérias que no mundo dito civilizado se
passam e às quais se fecha os olhos, por ser mais fácil.
Já que hoje tanto se valoriza a internet, vejam igualmente páginas que
revelam situações escabrosas no mundo ocidental (não é preciso ser adepto das
Wikileaks). Por exemplo, a 22 de Março do corrente o Senador de Massachussets
Richard Ross fez uma proposta de lei que, na verdade, não é ideia sua mas de um
cidadão comum (é preciso explicar que todo o cidadão ali pode fazer propostas
de lei desde que através do seu Senador). A proposta diz que todos aqueles em
processo de divórcio e que têm custódia das suas crianças devem obter a
permissão de um juiz para terem relações sexuais com terceiros. Giro, não é?
Mais giro ainda se pensarmos como raio hão-de os juízes efectivamente verificar
se isto foi cumprido ou não.
Pegando no tema, o Juiz Tood Baugh de Montana tinha entre mãos o caso de
uma menina de 14 anos que fora violada por um “homem” de 54. A menina cometeu
suicídio na sequência do trauma. O juiz considerou ser óbvio que a menina “era
mais velha do que a sua idade cronológica, razão pela qual condeno[u] o réu num
mês de prisão.”
Outra menina de 14 em Massachussets teve o azar de engravidar ao ser violada.
O Tribunal deu ao violador os mesmos direitos parentais que à mãe, pelo que
durante 16 anos “partilham” a filha decorrente da violação. Não se teve em
conta que a ainda criança de 14 anos tem de se encontrar com o violador
frequentemente à conta disto e que o bebé pode sofrer igual sorte. O que se
teve em conta é que “a criança é propriedade biológica de X”.
Aqui, reside tudo. O direito de propriedade. Nos tempos antigos, cada homem
livre (não o eram todos, só os privilegiados!) tinha terras, posses, escravos,
filhos – este rol era um rol de propriedade. Ainda hoje, o direito de
propriedade existe para um pequeno grupo da população. Não existe para aquela
cabo-verdiana de Sintra que foi obrigada a entregar os filhos a uma instituição
já que não laqueou as trompas por “conselho” da Assistência Social; não para
aquela portuguesa do Alentejo cuja filha lhe foi retirada porque não queria ver
o pai e o Tribunal assumiu que a culpa era da mãe e não das atitudes do pai
relativamente à menina (depois voltaram atrás mas não vi o Tribunal ser
responsabilizado até agora); não para aquela portuguesa de Lisboa que foi
também forçada a entregar um bebé para adopção porque não tinha trabalho e o
pai da criança alegava não poder pagar pensão. Não há direitos de propriedade
para quem também é propriedade - pois na
nossa lei subsiste a aura de um chefe de
família, e o resto são coisas adquiridas. Ora, de coisas não há história. A
propriedade não se manifesta nem tem voz audível. Quando fala, é desvalorizada
porque “não tem consciência do que diz"
- as crianças são só crianças e não se lhes dá crédito, a não ser que dê
jeito parecerem cronologicamente mais velhas, e as mulheres são doentes, pois
já Freud dizia que só uma mulher sofria dos nervos.
O problema, na prática calculista e fria, é este: Portugal é signatário das
Declarações dos Direitos Humanos, dos Direitos da Criança, e de dezenas de
Convenções Internacionais que proibem estes jogos de “propriedade”. O que
resulta, depois, no pagamento de umas avultadas somas por parte do país por ter
violado o que assinou. O dinheiro que Portugal perde para a Europa por violar
os direitos humanos é absurdo e cresce exponencialmente. Fossem evitados os
casos em que vem um Tribunal Internacional pedir contas a Portugal não deixando
a culpa morrer solteira, e Passos Coelho já não precisava de ir buscar tanto
dinheiro aos impostos - com isto se prova que este problema é um problema de
todos e não só das famílias que, como dizia Quino, não têm chefes porque são
uma cooperativa.