... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, May 23, 2014

A supremacia do WASP

Frazier Glenn Miller voltou a ser preso recentemente. Para um europeu, este nome talvez não diga nada... No entanto, nos E.U.A. é conhecido por ter fundado o White Patriot Party, anteriormente denominado os Cavaleiros do Klu Klux Klan. Contrariamente ao que se possa pensar, o Klu Klux Klan não morreu nos idos de 1800. Apesar de hoje em dia, os seus membros não andarem encapuçados a queimar negros nas pradarias, o KKK está vivo e, lamentavelmente, de saúde. Tem site na internet; é uma organização hierarquizada e ritualista, como dantes, e – se possível – ainda mais ridícula. Isto porque alargou o seu leque de raivas. Hoje em dia, o KKK não persegue apenas os negros; depois da Segunda Guerra, passou a perseguir os judeus e, mais recentemente, decidiu que todos os imigrantes eram para exterminar, porque isso feria a “supremacia branca” da América (esquecendo, naturalmente, que antes dos colonos britânicos chegarem aos E.U.A. já havia lá gente...)

Miller já fora preso por assassinar pessoas exactamente com o intuito de assegurar a limpeza étnica do Missouri. Mas, desta vez, a sua prisão tem tanto de inesperado como de invulgar. Miller foi apanhado num carro, em pleno acto sexual com um prostituto negro. Esta detenção apanhou toda a gente de surpresa, sendo que os agentes quase não acreditavam que um racista como Miller estivesse envolvido com um miúdo negro em “actos dos quais não queremos revelar os pormenores porque são demasiado depravados.” A incongruência desta acusação com as suas (igualmente absurdas) convicções levou  a que o próprio Miller se sentisse na necessidade de se justificar perante os seus seguidores. Agora reparem na razão do grande líder do KKK: “Na verdade, eu convenci o miúdo a encontrar-se comigo porque queria dar-lhe uma grande sova. Simplesmente, uma coisa acabou por levar à outra...” Não contente com esta frase lapidar, que denota espantosas perturbações de vários níveis, Miller ainda diz “Continuo a achar que um branco não deve nunca deitar-se com uma negra, porque o filho daí decorrente é a degeneração da nossa raça.”

Este senhor de 73 anos não tem remissão possível. Não só acredita estupidamente na supremacia de uns seres humanos em relação a outro por genética de fototipos, como não tem problemas em admitir que a sexualidade desde que feita de forma humilhante está muito bem como meio de punição. De facto, serviu melhor do que uma sova.

Miller admitiu, ainda, que essas coisas modernas, como sejam os movimentos de libertação feminina são tudo ideias para retirar ao homem o que lhe é devido, como dono que é. “São ideias de mulheres judias, falsamente interessadas nos direitos das mulheres; o que elas querem é espalhar a raça.” O homem (desde que branco, protestante e descendente de saxões) tem direitos fundamentais de posse e comando. Caso não consiga exercê-los, parece que lhe resta sodomizar miúdos negros economicamente desfavorecidos, a julgar pelo exemplo de Miller – e sempre com o nobre intuito de os fazer pagar pelo que são!

Mas não é só na América que estas coisas se passam. Basta ouvirmos as declarações de Jean-Marie Le Pen, da Frente Nacional Francesa, que declarou agora que um surto do vírus ébola seria boa ideia para acabar com o problema da imigração. Le Pen, um candidato às Europeias. Tal como Miller, ele próprio ex-candidato ao Senado, não é um tontinho da sua vila. É um homem que pode bem sentar-se a assinar papeis que decidam exterminar uma parte de nós. De mansinho e acidentalmente, claro. Para que não se perceba.


Passamos o tempo preocupados com o Ambiente e o clima e o pobrezinho do planeta. Mas muito antes de darmos cabo do planeta, havemos de dar cabo uns dos outros, por ignorância, raiva e sede de comando. 

Friday, May 9, 2014

Bernardo


A notícia de Bernardo Boldrini, a criança de 11 anos que foi morta pela família no Brasil depois de ter avisado as autoridades que o estavam a tentar matar em sua casa, parece ter chocado essas mesmas autoridades que não fizeram nada para o proteger.

O Bernardo foi sozinho à Procuradoria queixar-se de que o tinham tentado assassinar e que iriam matá-lo, na primeira oportunidade. A Procuradoria tomou nota mas achou que o Bernardo não podia ter razão; só podia ser um exagero fantasioso infantil.

Não é que estejamos à espera que um decisor acerte sempre. O problema é a falta de atenção e de crédito que é atribuída a alguns em detrimento de outros – razão pela qual o Bernardo foi encontrado morto numa valeta, estrategicamente a 80 km da casa de onde tinha suplicado que o tirassem.

O Bernardo tinha um duplo azar: cronológico e social. O seu primeiro problema foi o de ser criança. O que as crianças dizem não tem grande interesse perante a lei porque é sempre possível apelidá-las de tontinhas e confusas ou então imaginativas e irracionais (pleonasmos para mentiroso e mentalmente pouco saudável, porque não é bontio apelidar assim os inocentes). Portanto, quando a Procuradoria do Rio Grande do Sul recebeu um menino que pediu que o tirassem de casa porque o iam matar e que suplicou uma nova família, começou logo a pensar nestes adjectivos todos. Seguiu a mentalidade vigente. A criança “percebe mal, inventa”, é um tolo ou um diabo. Roça a deficiência ou a malvadez, sem que parem por um momento para pensar que tanto a mentira credível como o maquiavelismo retorcido requerem mais experiência de vida.

O segundo problema tem a ver com o facto do Bernardo ser de uma “família modelo”, segundo o próprio Tribunal. O pai é um médico conceituado; a madrasta, enfermeira competente. Ambos pertencem à nata social de um país no qual ser da elite ou da favela faz toda a diferença. “A lei não favorece a acção nos casos de uma criança de família de classe alta”, disseram.

A mãe do Bernardo suicidou-se há alguns anos. Aliás, apareceu morta, no consultório do sr. Boldrini. Agora, com o assassinato do filho, volta-se a questionar esse suicídio... O Bernardo nunca se sentiu muito confortável com a família “nova” mas, segundo o Tribunal, aceitou (tinha outra escolha?)

Mesmo depois do Bernardo aparecer morto, as autoridades só pensaram que ele podia ter tido razão no que disse porque a cúmplice do casal – uma assistente social a quem pagaram 8 mil euros para ser conivente com o caso – revelou os planos da família para acabar com a criança.

Não seria que pelo simples facto de um menino contar ao Tribunal uma situação tão escabrosa devia ter merecido que se tomassem providências? Não é estranho que uma criança tenha tido coragem para falar, indo contra os seus próprios parentes (claramente protegidos perante a criança, que foi mandada para casa, após o seu relato)? Que mensagem mandam às restantes crianças com esta atitude?

Neste momento, as autoridades empurram umas para as outras a responsabilidade de ter protegido o menino. Empurram até para a comunidade inteira porque, como diz a Procuradoria, “antes ninguém sabia de nada, mas agora que o Bernardo morreu já todos dizem que ele era maltratado. Isso é crime de omissão.” Além de que algumas pessoas recusaram ajudar o Bernardo “para não quebrarem o relacionamento com o pai dele.” Esperemos que essas pessoas não tenham filhos porque, caso tenham, já se viu que não dão crédito nenhum ao que os miúdos dizem e sentem, o que pode sair-lhes caro no futuro.

No entanto, não é verdade que ninguém tenha feito nada pelo Bernardo. A lei não fez. A sociedade não fez. Mas o Bernardo, com 11 anos, foi queixar-se da família ao Tribunal, dormia em casa de amigos, protegeu-se. O Bernardo fez tudo o que podia. Era “uma criança amadurecida, não fazia chantagem emocional.” Fosse ele adulto e estaria vivo.