A notícia de Bernardo Boldrini, a criança de 11 anos que foi morta pela
família no Brasil depois de ter avisado as autoridades que o estavam a tentar
matar em sua casa, parece ter chocado essas mesmas autoridades que não fizeram
nada para o proteger.
O Bernardo foi sozinho à Procuradoria queixar-se de que o tinham tentado
assassinar e que iriam matá-lo, na primeira oportunidade. A Procuradoria tomou
nota mas achou que o Bernardo não podia ter razão; só podia ser um exagero
fantasioso infantil.
Não é que estejamos à espera que um decisor acerte sempre. O problema é a
falta de atenção e de crédito que é atribuída a alguns em detrimento de outros
– razão pela qual o Bernardo foi encontrado morto numa valeta, estrategicamente
a 80 km da casa de onde tinha suplicado que o tirassem.
O Bernardo tinha um duplo azar: cronológico e social. O seu primeiro
problema foi o de ser criança. O que as crianças dizem não tem grande interesse
perante a lei porque é sempre possível apelidá-las de tontinhas e confusas ou
então imaginativas e irracionais (pleonasmos para mentiroso e mentalmente pouco
saudável, porque não é bontio apelidar assim os inocentes). Portanto, quando a
Procuradoria do Rio Grande do Sul recebeu um menino que pediu que o tirassem de
casa porque o iam matar e que suplicou uma nova família, começou logo a pensar
nestes adjectivos todos. Seguiu a mentalidade vigente. A criança “percebe mal,
inventa”, é um tolo ou um diabo. Roça a deficiência ou a malvadez, sem que
parem por um momento para pensar que tanto a mentira credível como o
maquiavelismo retorcido requerem mais experiência de vida.
O segundo problema tem a ver com o facto do Bernardo ser de uma “família
modelo”, segundo o próprio Tribunal. O pai é um médico conceituado; a madrasta,
enfermeira competente. Ambos pertencem à nata social de um país no qual ser da
elite ou da favela faz toda a diferença. “A lei não favorece a acção nos casos
de uma criança de família de classe alta”, disseram.
A mãe do Bernardo suicidou-se há alguns anos. Aliás, apareceu morta, no
consultório do sr. Boldrini. Agora, com o assassinato do filho, volta-se a
questionar esse suicídio... O Bernardo nunca se sentiu muito confortável com a
família “nova” mas, segundo o Tribunal, aceitou (tinha outra escolha?)
Mesmo depois do Bernardo aparecer morto, as autoridades só pensaram que ele
podia ter tido razão no que disse porque a cúmplice do casal – uma assistente
social a quem pagaram 8 mil euros para ser conivente com o caso – revelou os
planos da família para acabar com a criança.
Não seria que pelo simples facto de um menino contar ao Tribunal uma
situação tão escabrosa devia ter merecido que se tomassem providências? Não é
estranho que uma criança tenha tido coragem para falar, indo contra os seus
próprios parentes (claramente protegidos perante a criança, que foi mandada
para casa, após o seu relato)? Que mensagem mandam às restantes crianças com
esta atitude?
Neste momento, as autoridades empurram umas para as outras a
responsabilidade de ter protegido o menino. Empurram até para a comunidade
inteira porque, como diz a Procuradoria, “antes ninguém sabia de nada, mas
agora que o Bernardo morreu já todos dizem que ele era maltratado. Isso é crime
de omissão.” Além de que algumas pessoas recusaram ajudar o Bernardo “para não
quebrarem o relacionamento com o pai dele.” Esperemos que essas pessoas não
tenham filhos porque, caso tenham, já se viu que não dão crédito nenhum ao que
os miúdos dizem e sentem, o que pode sair-lhes caro no futuro.
No entanto, não é verdade que ninguém tenha feito nada pelo Bernardo. A lei
não fez. A sociedade não fez. Mas o Bernardo, com 11 anos, foi queixar-se da
família ao Tribunal, dormia em casa de amigos, protegeu-se. O Bernardo fez tudo
o que podia. Era “uma criança amadurecida, não fazia chantagem emocional.”
Fosse ele adulto e estaria vivo.