... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, May 9, 2014

Bernardo


A notícia de Bernardo Boldrini, a criança de 11 anos que foi morta pela família no Brasil depois de ter avisado as autoridades que o estavam a tentar matar em sua casa, parece ter chocado essas mesmas autoridades que não fizeram nada para o proteger.

O Bernardo foi sozinho à Procuradoria queixar-se de que o tinham tentado assassinar e que iriam matá-lo, na primeira oportunidade. A Procuradoria tomou nota mas achou que o Bernardo não podia ter razão; só podia ser um exagero fantasioso infantil.

Não é que estejamos à espera que um decisor acerte sempre. O problema é a falta de atenção e de crédito que é atribuída a alguns em detrimento de outros – razão pela qual o Bernardo foi encontrado morto numa valeta, estrategicamente a 80 km da casa de onde tinha suplicado que o tirassem.

O Bernardo tinha um duplo azar: cronológico e social. O seu primeiro problema foi o de ser criança. O que as crianças dizem não tem grande interesse perante a lei porque é sempre possível apelidá-las de tontinhas e confusas ou então imaginativas e irracionais (pleonasmos para mentiroso e mentalmente pouco saudável, porque não é bontio apelidar assim os inocentes). Portanto, quando a Procuradoria do Rio Grande do Sul recebeu um menino que pediu que o tirassem de casa porque o iam matar e que suplicou uma nova família, começou logo a pensar nestes adjectivos todos. Seguiu a mentalidade vigente. A criança “percebe mal, inventa”, é um tolo ou um diabo. Roça a deficiência ou a malvadez, sem que parem por um momento para pensar que tanto a mentira credível como o maquiavelismo retorcido requerem mais experiência de vida.

O segundo problema tem a ver com o facto do Bernardo ser de uma “família modelo”, segundo o próprio Tribunal. O pai é um médico conceituado; a madrasta, enfermeira competente. Ambos pertencem à nata social de um país no qual ser da elite ou da favela faz toda a diferença. “A lei não favorece a acção nos casos de uma criança de família de classe alta”, disseram.

A mãe do Bernardo suicidou-se há alguns anos. Aliás, apareceu morta, no consultório do sr. Boldrini. Agora, com o assassinato do filho, volta-se a questionar esse suicídio... O Bernardo nunca se sentiu muito confortável com a família “nova” mas, segundo o Tribunal, aceitou (tinha outra escolha?)

Mesmo depois do Bernardo aparecer morto, as autoridades só pensaram que ele podia ter tido razão no que disse porque a cúmplice do casal – uma assistente social a quem pagaram 8 mil euros para ser conivente com o caso – revelou os planos da família para acabar com a criança.

Não seria que pelo simples facto de um menino contar ao Tribunal uma situação tão escabrosa devia ter merecido que se tomassem providências? Não é estranho que uma criança tenha tido coragem para falar, indo contra os seus próprios parentes (claramente protegidos perante a criança, que foi mandada para casa, após o seu relato)? Que mensagem mandam às restantes crianças com esta atitude?

Neste momento, as autoridades empurram umas para as outras a responsabilidade de ter protegido o menino. Empurram até para a comunidade inteira porque, como diz a Procuradoria, “antes ninguém sabia de nada, mas agora que o Bernardo morreu já todos dizem que ele era maltratado. Isso é crime de omissão.” Além de que algumas pessoas recusaram ajudar o Bernardo “para não quebrarem o relacionamento com o pai dele.” Esperemos que essas pessoas não tenham filhos porque, caso tenham, já se viu que não dão crédito nenhum ao que os miúdos dizem e sentem, o que pode sair-lhes caro no futuro.

No entanto, não é verdade que ninguém tenha feito nada pelo Bernardo. A lei não fez. A sociedade não fez. Mas o Bernardo, com 11 anos, foi queixar-se da família ao Tribunal, dormia em casa de amigos, protegeu-se. O Bernardo fez tudo o que podia. Era “uma criança amadurecida, não fazia chantagem emocional.” Fosse ele adulto e estaria vivo.