... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 29, 2014

A mulher no comboio

Vinha sentada à minha frente. Tinha aquele ar fatigado e distante que se encontra em certos rostos ao fim do dia, que eu atribuí ao cansaço e também à barriga proeminente de grávida, sinal de que ela não era um mas dois. Para se distrair da viagem longa, começou a jogar com o telemóvel até que este tocou e ela atendeu apressada com “Sim, amor?” O som do aparelho era tão alto que se ouvia também o que dizia o “amor” do outro lado. Depressa se tornou evidente que a conversa não era de carinho, apesar das tentativas públicas da mulher para a tentar fazer passar como tal (ou, talvez, as tentativas fossem para si mesma, isso não sabemos porque pouco se conhecem aqueles com quem partilhamos algo, muito menos os que vimos uma vez num comboio de passagem).

“Mas, querido, se estou demorada é porque tive de esperar 15 minutos a mais na estação. Mandei-te mensagem a dizer que o comboio estava atrasado. Como não recebeste? Tenho relatório de entrega! Mas que pensas tu que estive eu a fazer em 15 minutos? Claro que estive na estação!” E a mulher justificava sem cessar os 15 minutos de atraso, como se tivesse feito um crime (bem sabemos que ela nem dá por isso, de tão habituada deve estar a dar razões e mais razões para tudo o que lhe acontece e a ver-se como efectiva criminosa por chegar 15 minutos mais tarde... quem sabe não estará a duvidar se o “amor” terá mesmo recebido a mensagem que ela mandou já que ele garante que não recebeu nada).

“Não estou com ninguém. Com ninguém! Por favor, com quem havia de estar? Bem sabes que ando sempre sozinha! ... Não, junto a mim vai sentada uma senhora com uma criança.” (e olhava-me, já desconfortável, altura em que achei por bem deixar de fingir que não ouvia a conversa e respondi-lhe com um sorriso compreensivo.)

“Mas não, não falei ao telefone com ninguém! Juro-te que estava a jogar no telemóvel! Palavra de honra, com ninguém.” E já um pouco chorosa (ela saberá melhor do que nós porquê, talvez antevisse o que a esperava a ela e à barriga quando chegasse a casa) ofereceu ao “amor” esta alternativa: “Podes verificar o meu telemóvel à vontade!”

Foi aí que o “amor” a apelidou de vários nomes que não coloco aqui e lhe disse que saísse imediatamente na próxima estação e apanhasse um táxi, que ele não era parvo nenhum, e ela tinha 10 minutos para chegar se tinha amor à vida. E a mulher, com o corpo muito cheio e os olhos muito vazios, carregando a custo a barriga, saíu, apressada e obediente.

Não a censuro. Às vezes, não há mesmo alternativa. Talvez ela não tenha família a quem recorrer; talvez na “família” dela abunde o mesmo tipo de “amor”, em que o controlo se mascara socialmente de preocupação e em que os castigos e as torturas físicas são aceitáveis porque “doem tanto a quem dá como a quem recebe”; talvez não tenha recursos que a permitam sobreviver; talvez receie a morte, porque os “acidentes” estão sempre a acontecer. E ela não é só um, são dois. A mulher são duas vidas. Talvez sejam até mais.


Gostava de a ter parado e de lhe dizer que saia dali enquanto pode. Que apanhe o comboio sempre em frente. Saia na paragem onde já não tenha medo de entrar em casa nem tenha de justificar o que não fez. Que vai haver sempre quem lhe diga que ela não soube apreciar o que tinha – quando não sabem que vida tinha. Que vai haver sempre quem faça coro com o “amor” e a apelide de coisas inomináveis, porque as pessoas se protegem fazendo coro com os mais fortes. Talvez um dia os filhos da mulher ouçam esses nomes e tenham dificuldade em acreditar que esses atributos são para referir a mãe que eles conhecem. Mas, infinitamente pior do que isso, será passar a vida com medo do “amor” e do que ele vai fazer. Um medo que não vai dizer a ninguém por receio de que ninguém acredite e que vai crescer também pelo silêncio dela e pela cooperação dos outros. Será pior ver os filhos a crescerem no mesmo pavor. Até ao dia em que alguém fará algo: talvez o “amor” cumpra a ameaça contra um deles; talvez ela se revolte e desapareça; talvez a criança cresça e enfrente o que nunca antes conseguiu enfrentar. Nessa altura, as pessoas dirão: “Ah, eu sempre achei que ali havia qualquer coisa invulgar...” Mas, lamentavelmente, farão o que eu fiz no comboio. Calam-se e não fazem nada. 

Friday, August 15, 2014

Gilette Cor de Rosa

Começa quando somos fetos. As nossas famílias (ou quem por nós vela) compram-nos roupinhas a condizer: rosa para as meninas, azul para os meninos e a parafernália de branco, amarelo e verde enquanto não se descobriu ainda o sexo do bebé. Depois, na infância, há todo um ambiente caseiro e social que define o estatuto macho ou fêmea comme il faut. Daí que se dêem bonecas às meninas e carrinhos aos meninos e tanto uns como outros sejam energicamente desencorajados de brinquedos contrários ao seu género, para que as meninas estimulem a doçura e os rapazes a força. Claro que há brinquedos andróginos, como os puzzles e os blocos de construções... Mas mesmo esses ultimamente aprenderam a segmentar o seu público consoante o género. A Lego, por exemplo, deixou de ter Lego unissexo (como tinha); agora tem Lego boys e Lego girls e, surpreendentemente (ou não!), expandiu as suas vendas globais em 25% por causa disso e triplicou o número de meninas que brincam com Lego. Isto porque a opção Girls está cheia de bonequinhas e casinhas fofinhas. Que influenciáveis são as crianças, certo? Errado. Quem compra o produto não são elas...

Os adultos adoram produtos exclusivos para o seu género. Numa pequena volta ao supermercado, reparem como está organizada a secção de higiene: shampoo para homem, shampoo para mulher; lâminas de barbear para homem, lâminas depiladoras para mulher; desodorizante para ele e para ela; enfim, a lista é interminável... Agora, tirem um tempinho e verifiquem como os ingredientes do tal shampoo tão específico são iguaizinhos quer diga Man ou Woman. A razão pela qual raramente se dá por isso é que nem entramos na ala do supermercado específica para o género oposto ao nosso.

Nem só na higiene e beleza isto se verifica. Outro campo vasto é o das vitaminas e suplementos alimentares ou cápsulas para desportistas. Ainda recentemente um anúncio de vitaminas “para homem e para mulher em separado” deixava claras as necessidades diferentes de um e de outro sexo após a meia idade, sublinhando que  “para além de necessitarem de vitaminas para fazer frente às alterações da menopausa, as mulheres necessitam de ter uma mente sempre activa.” Esta deliciosa publicidade não só esquece que a andropausa existe - embora com menos fúria hormonal - como, sub-repticiamente, lá vai dizendo que os homens não precisam de ter uma mente activa depois dos 50.

Mas, afinal, que ganham as marcas com isto? Vendem mais. Os lucros de todas as marcas que fazem distinção de género nos seus produtos são consideráveis, exactamente a partir do momento em que fizeram essa distinção. Além disso, aumentam os lucros não só pelo número de vendas mas também pelo aumento de preços, considerando que um produto específico tem de ser mais caro (apesar de ser igualzinho...). Neste particular, note-se que os produtos para mulheres são geralmente mais caros do que os produtos para homens e não é difícil perceber porquê: de forma geral, as mulheres vão mais às compras. Só que, contrariamente aos anos 50, já não querem comprar produtos que sirvam “para toda a família” (e.g. Pasta Medicinal Couto), talvez porque a noção familiar se estilhaçou completamente. Em boa verdade, isto dava um estudo muito mais profundo.

A febre já alcançou o mundo da eletrónica. A Fujitsu lançou um laptop para mulheres chamado “Floral Kiss”. Tem adornos com brilhantes e flores, horóscopo integrado e é especialmente desenhado para as “unhas longas das senhoras”, esse atributo secretarial de excelência.


Para cativar o seu público-alvo, as companhias apostam também nas embalagens. O velho estereótipo das cores continua a funcionar bastante bem. De igual modo, linhas curvas, flores e texturas suaves estão nos produtos para mulheres; embalagens quadradas, ângulos rectos e, se possível, poucos desenhos e a inclusão de números – os homens acham que os números validam seja o que for – encontram-se nos produtos masculinos.  Ainda assim, é mais comum ver uma mulher usar um produto “for men” do que o contrário, provavelmente pela mesma razão que faz com que uma mulher não se sinta muito chocada por ir ao WC masculino se estiver aflita mas um homem prefere ir a um cantinho da via pública do que ser visto a entrar no WC feminino. Coisas... 

Friday, August 1, 2014

Requiem para os viciados em chocolate


Uma estação de televisão holandesa mostrou uma experiência curiosa: um apresentador foi até à Costa do Marfim, principal exportador de cacau, dar a conhecer o chocolate aos agricultores de cacau. As imagens impressionam sempre mais do que as palavras mas eis a minha tentativa de contar a história. O apresentador começa por se dirigir a Alphonse, proprietário de umas terras que produzem cacau. “Proprietário” quer dizer que ele tem 4 trabalhadores a colher frutos e a secar grãos, porque o próprio Alfonse vive muito pobremente: ganha 7 euros por dia e tem uma família de 15 pessoas, não esquecendo que tem de pagar aos 4 empregados.

Quando confrontado sobre “que se faz destes grãos?” Alphonse responde que sabe que dali se faz comida, mas não sabe dizer o quê porque nunca a viu. Ele vende os grãos a um produtor.  Alphonse é o primeiro a provar um dos chocolates que o apresentador levou consigo. Fica entusiasmado com o sabor doce – para ele inesperado! - e decide que os seus amigos têm de provar aquilo. Na roda de amigos, seguem-se exclamações fantásticas sobre o dito chocolate, como por exemplo “Então é por isto que os brancos são tão saudáveis!” Que diria a Organização Mundial de Saúde se ouvisse esta frase?...

O documentário explica que o chocolate existe na Costa do Marfim mas é muito caro: 2 euros por barra o que, tendo em conta os salários, é um valor absurdo. Isso explica o porquê destes homens nunca terem provado um chocolate que, aliás, ali não é um produto tão disponível como na Europa e na América.

Em seguida, o apresentador conversa com os trabalhadores de Alphonse, cuja alegria ruidosa no trabalho é contagiante. Questionados sobre o destino dos grãos após fermentação nas folhas de banana, eles também não sabem, embora tenham ouvido dizer que servem para fazer bom vinho. Estão mais desconfiados sobre a verdadeira origem do chocolate que lhes é apresentado mas também mais curiosos. Querem saber exactamente como se passa dos grãos ao chocolate e acham graça ao facto dos “brancos serem viciados” nos quadradinhos que provam agora. Fazem piadas com a relação entre comer chocolate e ficar com a pele branca. Finalmente, dizem querer guardar o papel do chocolate para mostrar aos filhos porque é inacreditável e também porque estão orgulhosos – “Nós queixamo-nos porque cultivar cacau é um trabalho difícil. Mas agora provámos o fruto deste trabalho. Que maravilha! Que privilégio!”

E isto é que impressiona. Porque estas pessoas podiam ter dito algo como “Andamos aqui a trabalhar como escravos para que outras pessoas possam comer chocolate todos os dias!” ou “Como é possível que os nossos filhos nunca tenham comido isto quando somos nós que trabalhamos para dar isto ao mundo?”

Mas não. Ficaram felizes com o facto de terem provado o simples fruto do seu trabalho. Deram graças por um direito que não sabiam que tinham. Que, vendo bem, não têm nem voltarão a ter apenas devido à gritante injustiça do mundo. Mesmo as pessoas que viram este documentário e se emocionaram em breve esquecerão como é horrível que o mundo seja dividido em apanhadores de cacau, que nunca comem chocolate e que nem sabem o que isso seja apesar da dureza da labuta,  e em viciados em chocolate, que nunca tocaram o fruto duro e amargo de cacau por curiosidade e nem muito menos por necessidade.

Amanhã vamos ao supermercado e havemos de comprar uma barrita, já de consciência limpa. Os problemas dos outros, a fome dos outros, a suas dores... não é nunca um drama nosso. Até ao dia em que tivermos nós problemas, fome, dores. Seguramente não será hoje, portanto se comermos um chocolate até encaramos a vida melhor.


Mas interrogo-me: agora que provaram o chocolate e sabem que estão a perder uma delícia; agora que perceberam que metade do mundo come abundamente algo que eles produzem com sacrifício e que a eles lhes está vedado... é bem possível, parece-me a mim, que os apanhadores de cacau já não trabalhem com tanta alegria. É que, às vezes, a ignorância traz felicidade.