... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, August 1, 2014

Requiem para os viciados em chocolate


Uma estação de televisão holandesa mostrou uma experiência curiosa: um apresentador foi até à Costa do Marfim, principal exportador de cacau, dar a conhecer o chocolate aos agricultores de cacau. As imagens impressionam sempre mais do que as palavras mas eis a minha tentativa de contar a história. O apresentador começa por se dirigir a Alphonse, proprietário de umas terras que produzem cacau. “Proprietário” quer dizer que ele tem 4 trabalhadores a colher frutos e a secar grãos, porque o próprio Alfonse vive muito pobremente: ganha 7 euros por dia e tem uma família de 15 pessoas, não esquecendo que tem de pagar aos 4 empregados.

Quando confrontado sobre “que se faz destes grãos?” Alphonse responde que sabe que dali se faz comida, mas não sabe dizer o quê porque nunca a viu. Ele vende os grãos a um produtor.  Alphonse é o primeiro a provar um dos chocolates que o apresentador levou consigo. Fica entusiasmado com o sabor doce – para ele inesperado! - e decide que os seus amigos têm de provar aquilo. Na roda de amigos, seguem-se exclamações fantásticas sobre o dito chocolate, como por exemplo “Então é por isto que os brancos são tão saudáveis!” Que diria a Organização Mundial de Saúde se ouvisse esta frase?...

O documentário explica que o chocolate existe na Costa do Marfim mas é muito caro: 2 euros por barra o que, tendo em conta os salários, é um valor absurdo. Isso explica o porquê destes homens nunca terem provado um chocolate que, aliás, ali não é um produto tão disponível como na Europa e na América.

Em seguida, o apresentador conversa com os trabalhadores de Alphonse, cuja alegria ruidosa no trabalho é contagiante. Questionados sobre o destino dos grãos após fermentação nas folhas de banana, eles também não sabem, embora tenham ouvido dizer que servem para fazer bom vinho. Estão mais desconfiados sobre a verdadeira origem do chocolate que lhes é apresentado mas também mais curiosos. Querem saber exactamente como se passa dos grãos ao chocolate e acham graça ao facto dos “brancos serem viciados” nos quadradinhos que provam agora. Fazem piadas com a relação entre comer chocolate e ficar com a pele branca. Finalmente, dizem querer guardar o papel do chocolate para mostrar aos filhos porque é inacreditável e também porque estão orgulhosos – “Nós queixamo-nos porque cultivar cacau é um trabalho difícil. Mas agora provámos o fruto deste trabalho. Que maravilha! Que privilégio!”

E isto é que impressiona. Porque estas pessoas podiam ter dito algo como “Andamos aqui a trabalhar como escravos para que outras pessoas possam comer chocolate todos os dias!” ou “Como é possível que os nossos filhos nunca tenham comido isto quando somos nós que trabalhamos para dar isto ao mundo?”

Mas não. Ficaram felizes com o facto de terem provado o simples fruto do seu trabalho. Deram graças por um direito que não sabiam que tinham. Que, vendo bem, não têm nem voltarão a ter apenas devido à gritante injustiça do mundo. Mesmo as pessoas que viram este documentário e se emocionaram em breve esquecerão como é horrível que o mundo seja dividido em apanhadores de cacau, que nunca comem chocolate e que nem sabem o que isso seja apesar da dureza da labuta,  e em viciados em chocolate, que nunca tocaram o fruto duro e amargo de cacau por curiosidade e nem muito menos por necessidade.

Amanhã vamos ao supermercado e havemos de comprar uma barrita, já de consciência limpa. Os problemas dos outros, a fome dos outros, a suas dores... não é nunca um drama nosso. Até ao dia em que tivermos nós problemas, fome, dores. Seguramente não será hoje, portanto se comermos um chocolate até encaramos a vida melhor.


Mas interrogo-me: agora que provaram o chocolate e sabem que estão a perder uma delícia; agora que perceberam que metade do mundo come abundamente algo que eles produzem com sacrifício e que a eles lhes está vedado... é bem possível, parece-me a mim, que os apanhadores de cacau já não trabalhem com tanta alegria. É que, às vezes, a ignorância traz felicidade.