... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, September 26, 2014

Obituário


Para o Daniel 


No dia da sua morte, o nome do rapaz não saiu no jornal. A página impressa dizia “Jovem atirou-se de um prédio no centro”. Não havia menção à sua identidade. “Os ricos põem anúncios na coluna social quando um bebé nasce, ou quando obtêm diplomas; os pobres nem quando morrem têm direito ao obituário”, pensava o polícia nessa manhã. Quando o polícia foi chamado ao local no dia anterior, tinha tido muita dificuldade em reconhecer no rapaz caído no chão o seu antigo colega de escola. “Já não o via há muitos anos” disse ele a um colega, mas na verdade pensava que aquilo que ali estava no chão eram só restos, fiapos e bocados do ser humano que tinha conhecido. Custava-lhe fazer a ligação entre o antigo rapazinho de escola e estes esfrangalhos de carne no passeio de um  adulto já vazio de si.

“O que é que leva um tipo a matar-se? A gente nunca há-de saber” resmungou o colega do polícia, chateado com o calor, um indefinido cheiro a sangue que secava ao sol e com o facto da multidão continuar a não arredar pé como se esperasse uma ressurreição. Mas o polícia, calado, cismava no rapazinho triste que conhecera há muitos anos. O rapazinho que passava um frio de rachar no Inverno e que dividia com o irmão uma única camisola de lã – um dia vestia-a um, no dia seguinte vestia-a o outro - ; o rapazinho que comia na escola a refeição social e escondia paposecos no bolso roto das calças; o rapazinho que roubava porque o pai o mandava fazer o “serviço” e que aparecia com marcas de talhos de faca nos braços, nas pernas, nas costas, quando o “serviço” não tinha trazido dinheiro suficiente para casa. O polícia lembrava-se disto tudo e de outras coisas sobre o rapazinho que nem a sua memória queria recordar e resmungou “Ele sempre teve uma vida de cão.” Não disse mais nada, mas lá consigo mesmo pensou que era bem possível que toda a vida deste rapaz tivesse sido assim ou pior e que ele se tivesse, simplesmente, cansado de tanto lutar para sobreviver.

“Nós é que fazemos o nosso destino” vaticinou o colega de turno do polícia. “É sempre bonita esta filosofia quando se nasce num berço de oportunidades”, pensou o polícia que conhecia o rapaz, “Mas um tipo que nasce na miséria, ou na violência, ou em ambos não faz destino nenhum. Tem à sua frente anos e anos de todas as torturas que se podem fazer aos elos mais fracos. Depois, quando cresce, ou consegue miraculosamente arranjar forma de sair daí ou não. Há os que vão para polícias. E há os que se atiram de um prédio.”

Esse rapaz que agora jazia informe na rua já tinha sido um menino que lutava desesperadamente pela vida. Com 9 anos, irrompera pela porta da mãe do polícia, sua vizinha, pedindo protecção porque “o queriam matar”, dizia ele. Esse menino que então fugira da morte corajosamente, era o mesmo que voluntariamente a tinha ido agora abraçar em suspenso. Crueldade irónica.

Uma transeunte - que pertencia à categoria daquelas pessoas sensíveis de que fala Sophia no seu poema (portanto, não suportava ver matar galinhas, mas gostava de as comer) – disse muito alto e com uma expressão de nojo: “Que horror, que egoísta! O homem não se lembrou que ia ficar espapaçado no chão e que íamos ficar com o estômago às voltas e pesadelos pela noite fora? Que falta de consideração!” E esta dama, que nunca na vida fizera algo pelos maltratados, ensaiou um desmaio.

O polícia pensou que era bem fácil a esta gente nervosa julgar um corpo no chão, de intestinos fora da barriga e de mãos quase coladas ao pavimento por força do sangue agora já seco. A ele, polícia com recordações, era só infinitamente triste, porque os olhos agora sem sopro de vida do jovem eram a mesma íris, as mesma pestanas do rapazinho de outros tempos. “O que terá ele pensado naqueles segundos entre o prédio e o chão, quando estava no ar?” torturava-se o polícia, “Será que se arrependeu do salto?”

E nisto arrependia-se também o polícia de nunca mais ter sabido do seu antigo colega de escola, porque quem sabe...talvez... tudo fosse diferente. E, sacudindo a cabeça, engoliu. “Podia ser eu. Só Deus é o juiz deste homem.” E esperou que alguém escrevesse, respeitosamente, um obituário que dissesse que o mundo desse rapazinho fora muito difícil e que, a seu modo, ele fora um herói por ter conseguido fazer uma vida com a existência que lhe coube em sorte.


Friday, September 12, 2014

Abuso da Liberdade de Imprensa


O Papa Francisco aprovou os estatutos da Associação Internacional de Exorcistas no Vaticano, legalizando os exorcismos. Deste assunto não se fez grande publicidade, talvez porque, dentro da própria Igreja Católica, os padres exorcistas sejam uma espécie de classe à parte – isto sem falar no conceito de exorcismo que leva, de imediato, a questionar a ideia de Diabo e a sua (possível) influência prática nas vivências. No seguimento desta legalização, o Rev. Francesco Bamonte disse à Imprensa que “o exorcismo era um acto de caridade para com aqueles que sofrem” e que “as possessões diabólicas estavam a aumentar porque hoje em dia muita gente se dedicava ao ocultismo.” O Vaticano não se pronunciou. Mutatis mutandis, também eu não me pronuncio porque não pratico o catolicismo e não tenho conhecimentos para opinar.

No entanto, esta contemporaneidade do exorcismo veio-me à cabeça quando li que um jornal inglês estava a ser severamente criticado pela exploração de uma história dita satânica.  O jornal apresentava na capa um menino de 4 anos, cuja barriguinha nua apresentava um sinal, que – segundo o jornal noticiava em parangonas – era “ a marca do Diabo”. No artigo interior, o jornal entrevistava os pais e, para maior exposição, escolheu identificar e nomear a criança. Já estou, portanto, a ver o drama que este menino passou a viver em público, sobretudo no colégio, onde, depois desse artigo, não terão faltado pais histéricos e colegas provocadores...

Em si, o artigo é jornalisticamente pobre e ridiculamente mal formulado - baseia-se numa entrevista aos pais da criança, que parecem desejosos de contar ao mundo a aflição que lhes coube porque “algo sobrenatural visitou o nosso filho”. Também insistem em que não sabem como foi feito um símbolo tão bem desenhado que, eventualmente e noutras circunstâncias, nos faria pensar porque raio andariam eles a marcar a criança como se fosse gado... (perdão pela divagação). Bem pior do que isso é, no entanto, a utilização completa da criança cujo nome e cara estão estampados no jornal. Será que ninguém pensou que um ser humano com 4 anos é um ser humano de pleno direito? E que, portanto, não pode nem deve ser  usado para fins publicitários e muito menos “endemoninhado” publicamente? O que isso lhe pode trazer de prejudicial numa sociedade conservadora e desejosa de uma caça às bruxas é assustador, sobretudo se tivermos em conta que a criança não está a ser protegida por ninguém – são os pais que o consideram marcado pelo Demónio e o expõem como tal...

A questão dos direitos do menino foi levantada por diversos Membros do Parlamento dos dois principais partidos  – já disse que isto foi na Inglaterra? – que denunciaram o caso à Press Complaints Comission, afimando que o jornal fora completamente “inapropriado, irresponsável e errado”; “será que não se envergonham disto?”. O jornal respondeu dizendo que “a história tinha chegado até à redacção [são sempre misteriosos os caminhos da informação] e que nunca encorajaram os pais a dar a entrevista, até porque os pais já tinham explorado a história nas redes sociais sem qualquer preocupação pelo bem estar da criança em causa.”

Obviamente, os principais “culpados” desta situação são os pais, cuja insensibilidade está à vista. Mas isso advém do velho mito que alguns pais têm de que são donos dos filhos como são donos de um poodle ou de um carro. No entanto, também critico o editor, claro. Sendo o jornal da sua responsabilidade, a escolha de publicar uma fotografia do rosto da criança bem como de publicar o nome do menino é sua. Podia fazer a história sem lhe apontar o dedo. O consentimento paterno não inviabiliza a sua óbvia falta de ética.

Por outro lado, saúdo esta cultura inglesa que não receia apontar o erro quando isso fere a sua noção de “honour”. Em Portugal, podemos fazer queixas e reclamações pela falta de ética da imprensa, pelas suas falsas informações, podemos lutar pelos direitos de quem não pode falar por si, que o mais que nos acontece é sermos silenciados por algum editor cuja capacidade de resposta é igual à sua capacidade redactora.