Para o Daniel
No dia da sua morte, o nome do
rapaz não saiu no jornal. A página impressa dizia “Jovem atirou-se de um prédio
no centro”. Não havia menção à sua identidade. “Os ricos põem anúncios na
coluna social quando um bebé nasce, ou quando obtêm diplomas; os pobres nem
quando morrem têm direito ao obituário”, pensava o polícia nessa manhã. Quando
o polícia foi chamado ao local no dia anterior, tinha tido muita dificuldade em
reconhecer no rapaz caído no chão o seu antigo colega de escola. “Já não o via
há muitos anos” disse ele a um colega, mas na verdade pensava que aquilo que
ali estava no chão eram só restos, fiapos e bocados do ser humano que tinha
conhecido. Custava-lhe fazer a ligação entre o antigo rapazinho de escola e
estes esfrangalhos de carne no passeio de um
adulto já vazio de si.
“O que é que leva um tipo a
matar-se? A gente nunca há-de saber” resmungou o colega do polícia, chateado
com o calor, um indefinido cheiro a sangue que secava ao sol e com o facto da
multidão continuar a não arredar pé como se esperasse uma ressurreição. Mas o
polícia, calado, cismava no rapazinho triste que conhecera há muitos anos. O
rapazinho que passava um frio de rachar no Inverno e que dividia com o irmão
uma única camisola de lã – um dia vestia-a um, no dia seguinte vestia-a o outro
- ; o rapazinho que comia na escola a refeição social e escondia paposecos no
bolso roto das calças; o rapazinho que roubava porque o pai o mandava fazer o
“serviço” e que aparecia com marcas de talhos de faca nos braços, nas pernas,
nas costas, quando o “serviço” não tinha trazido dinheiro suficiente para casa.
O polícia lembrava-se disto tudo e de outras coisas sobre o rapazinho que nem a
sua memória queria recordar e resmungou “Ele sempre teve uma vida de cão.” Não
disse mais nada, mas lá consigo mesmo pensou que era bem possível que toda a
vida deste rapaz tivesse sido assim ou pior e que ele se tivesse, simplesmente,
cansado de tanto lutar para sobreviver.
“Nós é que fazemos o nosso
destino” vaticinou o colega de turno do polícia. “É sempre bonita esta
filosofia quando se nasce num berço de oportunidades”, pensou o polícia que
conhecia o rapaz, “Mas um tipo que nasce na miséria, ou na violência, ou em
ambos não faz destino nenhum. Tem à sua frente anos e anos de todas as torturas
que se podem fazer aos elos mais fracos. Depois, quando cresce, ou consegue
miraculosamente arranjar forma de sair daí ou não. Há os que vão para polícias.
E há os que se atiram de um prédio.”
Esse rapaz que agora jazia
informe na rua já tinha sido um menino que lutava desesperadamente pela vida.
Com 9 anos, irrompera pela porta da mãe do polícia, sua vizinha, pedindo
protecção porque “o queriam matar”, dizia ele. Esse menino que então fugira da
morte corajosamente, era o mesmo que voluntariamente a tinha ido agora abraçar
em suspenso. Crueldade irónica.
Uma transeunte - que pertencia à
categoria daquelas pessoas sensíveis de que fala Sophia no seu poema (portanto,
não suportava ver matar galinhas, mas gostava de as comer) – disse muito alto e
com uma expressão de nojo: “Que horror, que egoísta! O homem não se lembrou que
ia ficar espapaçado no chão e que íamos ficar com o estômago às voltas e
pesadelos pela noite fora? Que falta de consideração!” E esta dama, que nunca
na vida fizera algo pelos maltratados, ensaiou um desmaio.
O polícia pensou que era bem
fácil a esta gente nervosa julgar um corpo no chão, de intestinos fora da
barriga e de mãos quase coladas ao pavimento por força do sangue agora já seco.
A ele, polícia com recordações, era só infinitamente triste, porque os olhos
agora sem sopro de vida do jovem eram a mesma íris, as mesma pestanas do
rapazinho de outros tempos. “O que terá ele pensado naqueles segundos entre o
prédio e o chão, quando estava no ar?” torturava-se o polícia, “Será que se
arrependeu do salto?”
E nisto arrependia-se também o
polícia de nunca mais ter sabido do seu antigo colega de escola, porque quem
sabe...talvez... tudo fosse diferente. E, sacudindo a cabeça, engoliu. “Podia
ser eu. Só Deus é o juiz deste homem.” E esperou que alguém escrevesse,
respeitosamente, um obituário que dissesse que o mundo desse rapazinho fora
muito difícil e que, a seu modo, ele fora um herói por ter conseguido fazer uma
vida com a existência que lhe coube em sorte.