... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, October 10, 2014

Mitos olímpicos


Confesso: antes deste episódio do julgamento parcial, eu nunca tinha ouvido falar de Oscar Pistorius. Agora já sei que é uma lenda viva na África do Sul, um grande campeão olímpico, um símbolo das pessoas com deficiência motora e, além disso, um rapaz bonito que enche posters. Como, porém, eu não vivo conectada aos mundos em que Pistorius se move e em que suspiram por ele, a primeira impressão dele foi péssima. Foi a de um tipo a chorar lágrimas de crocodilo depois de ter morto a namorada a tiro.

Pistorius não disse nunca que não tinha morto a namorada. Seria difícil negar, já que era de madrugada e estavam ambos sozinhos em casa. Além disso, as armas não se disparam sozinhas. O que ele afirmou em sua defesa foi que não sabia que estava a disparar contra a namorada – pensava que estava um intruso em casa e, portanto, sacou da arma e disparou umas balas através da porta da casa de banho que estava fechada com o suposto “intruso” lá dentro. Quando voltou à cama, percebeu que a namorada não estava lá e epifanicamente percebeu que a tinha morto, pelo que chamou logo uma ambulância.

Parece-me impossível que alguém que se guie pela lógica acredite nesta história. No entanto, a juíz Masipa acreditou. Agora, Pistorius aguarda uma sentença que será infinitamente mais branda porque se achou estar provado que “ele não tinha intenção de matar”.

Estive a tentar perceber esta história de um ponto de vista ingénuo a ver se chegava à mesma conclusão delico-doce de Masipa. Portanto, vamos imaginar que Pistorius e a namorada eram um casal “regular”. No entanto, a acusação mostrou imensas mensagens trocadas entre os dois em que Reeva (agora morta) lhe dizia que tinha “medo dele e dos seus ataques violentos”. A isto, Masipa contrapôs eufemisticamente que todas as relações são “imprevisíveis e dinâmicas”. Vamos, igualmente, imaginar que Pistorius se levantou e não deu pelo facto da namorada não estar deitada na cama. Ouviu uns barulhos e assumiu que um ladrão estava trancado na casa de banho (onde deve haver muito para roubar) e, portanto, não acordou Reeva nem viu se era ela que estava lá dentro; sacou da arma e tratou do assunto. Vamos pensar que sim, porque o rapaz é um homem de acção. Mas então como se explica que poucos minutos antes de ter morto Reeva, Pistorius tenha feito um telefonema de 9 minutos?... Estava acordado há muito, pelos vistos, o que lhe deu tempo para ver que Reeva não estava na cama. Telefonou para a Polícia? Nada disso. Ligou para uma ex-namorada que, como convém, o defende com unhas e dentes, dizendo que “a outra” (Reeva) era uma exagerada histérica e que Pistorius é um doce de pessoa. Esta questão do telefonema nem sequer foi tida em conta por Masipa.

Vamos, então, pensar que o que convenceu Masipa foi o facto de Pistorius se apresentar bastante pesaroso e de até chorar no julgamento. Isto foi o fundamental já que Masipa relatou que “o comportamento de Pistorius era incongruente com o desejo de matar alguém.” Não é preciso ser um grande criminologista para perceber que Pistorius chorava por si e pelo que lhe podia acontecer, não por quem tinha morto…

Resultado: não consegui perceber a conclusão de Masipa, mesmo com o esforço de eliminação do bom senso. O que consegui perceber é que, tristemente, este caso só vem re-confirmar que o feminicídio – a morte de uma mulher às mãos do companheiro - é irrelevante para a justiça. Tão irrelevante que se procuram dar razões para isso  - vide a defesa  “Ela nem sequer estava apaixonada por ele”! Portanto, esta Reeva merecia umas balas, já que toda a nação da África do Sul está apaixonada pelo seu atleta.


Acontece que a nação conhece o atleta; não conhece o homem. O homem Oscar Pistorius, em plena consciência e vontade, matou. Não devia merecer uma justiça diferente dos outros homens. Eu assino por baixo do jornalista do Guardian que disse: “O resultado desta história faz-me entender que não percebo o mundo em que vivo. Mas Pistorius percebe o mundo muito bem. Tão bem que sabe exactamente que se pode safar, mesmo fazendo o que fez.”