... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, November 21, 2014

"A mim nunca me fez mal nenhum..."


A notícia sobre a suspensão do jogador de futebol Americano Adrian Peterson da Liga após se ter descoberto a acusação que pende sobre ele por castigos corporais violentos em relação aos filhos veio levantar o debate nos E.U.A. do que se entende por “castigos corporais violentos”. Imediatamente apareceu o clã de fãs – afinal, é uma estrela do futebol local – a dizer que é vergonhoso o estado a que as coisas chegaram no país, alegando que, por levar um estalo, um filho tem logo direito a chamar a Polícia e que isto explica a indisciplina juvenil que grassa por aí… Se eu tivesse ouvido apenas esta informação, seria bem capaz de concordar.

No entanto, basta informarmo-nos sobre a história para perceber que o filho mais novo de Peterson tem 4 anos apenas e que Peterson não lhe deu um estalo – usou um galho de árvore para lhe bater nas pernas, na barriga e nos genitais até os deixar em sangue. São variáveis que fazem toda a diferença. Não faço a minima ideia do que fez a criança para receber o “castigo” em causa – alias, causa-me um certo nojo que se faça esta pergunta, que implica a desculpa ética de que existe a possibilidade de que uma criança de 4 anos possa ter aborrecido o papá de tal forma que mereça ficar com os genitais em sangue. Talvez fosse bastante mais humano e mais lógico indagarmo-nos sobre se o paizinho não precisa de um tratamento de choque antes que se irrite com outra pessoa (ou com a mesma…)

Facto é que, após esta notícia, fizeram-se sondagens (Vide Huffington Post e YouGov) e concluiu-se que 81% dos americanos acredita que os castigos corporais são benéficos na educação das crianças e deviam ser legalizados. O próprio Peterson justificou a sua attitude perante o filho, alegando que ele mesmo costumava ser tratado assim na infância e que essas punições “nunca lhe fizeram mal nenhum…” Curiosamente (ou não!), é exactamente o mesmo argumento usado por todos aqueles que acreditam que uma boa sova faz milagres: “eu também apanhei e não me fez mal nenhum!” Aliás, costumam ir mais longe: tal como Peterson, acreditam que o seu sucesso (profissional e social, já que o emocional parece andar pelas ruas da amargura) se deve à “boa disciplina” que foi exercida pelos seus pais, cuja pancadaria em muito lhes aproveitou. Não sou psicóloga, mas estou em crer que  isto é uma espécie de sublimação – um mecanismo de defesa que torna um comportamento horrível numa situação socialmente aceitável.

Há estudos de sobra que nos demonstram que os castigos corporais abusivos não funcionam, tornam as crianças mais agressivas, causam problemas neurológicos e são apenas reflexos pavlovianos, isto é, não incutem noção do certo e do errado, fazendo com que a criança continue a ter comportamentos “errados” quando a ameaça de agressão não está por perto. Stacy Drury, professor de Ciência do Comportamento na Universidade de Tulane, resume tudo quando diz que “os castigos corporais só vêm ensinar às crianças que a agressão é um método aceitável para a resolução de problemas.”

No caso de Peterson, o problema é mais profundo. Não é uma simples agressão; é uma brutalidade que merece ser legalmente punida, até pelas marcas que deixou e deixará. Também não é um castigo; é um abuso de poder perante um ser humano quase bebé. Finalmente, é a continuidade do que o próprio Peterson estava habituado a ver como “normal” na convivência familiar.


A questão aqui está no quebrar do ciclo. Nalguma geração – esperemos que na do filho de Peterson, já que houve a coragem de desmascarar a situação e acabar com ela – este ciclo de abusos terá de acabar. É a geração que quebra o ciclo que tem em si não só o poder de mudança como a energia da evolução do mundo. Não é nisso que reside o propósito da espécie humana? 

Friday, November 7, 2014

Em jeito de resposta

Tem-me sido perguntado porque falo de tantos assuntos que, eventualmente (ou na opinião de alguns) não dizem directamente respeito aos Açores. É um ponto de vista. No entanto, acredito que os Açores, ainda que insulares, não precisam de estar insulados. Nesse sentido, penso que os casos, as informações, as questões de âmbito mundial pertencem igualmente aos Açores e interessam a quem lá vive. Se não é assim, teríamos de admitir que os Açores vivem de si, em si e para si  apenas – o que seria desastroso, a começar pelo ponto de vista económico e a acabar no cultural.

Outra questão que já me foi colocada é como traduzo as peças jornalísticas originais de que falo para as comentar depois. É uma pergunta um bocado escolar, mas julgo perceber nela um sentido mais profundo de tentativa de fidelidade ao original. Terei de responder com alguma teorização sobre o fenómeno da tradução em si.

Um trabalho de tradução literária ou técnica é sempre um trabalho ingrato porque o tradutor se encontra num duplo papel: primeiro, o de leitor da obra – posição equivalente à de todos os que se interessam pela leitura da mesma - ; segundo, o de intérprete da mesma, versando-a noutra língua e, logo, noutra cultura.

Nas traduções acontece exactamente o mesmo que com a interpretação de uma partitura musical: embora o que lá esteja escrito seja o mesmo para todos, cada qual a vai interpretar a seu modo. Como tal, surgem pequenas diferenças de andamento, de expressão, umas mais subtis e outras nem tanto. Deste modo, resulta que o que para uns é uma tradução excelente não agradará a outros, sem desprimor de pormenores técnico-linguísticos. Por exemplo, no caso de uma tradução literária, o que mais seduz não é a conveniência da semântica ou o rigor da gramática; é sim o estilo, a composição, tudo aquilo enfim que dá ao tradutor a ilusão de ser um segundo escritor da obra em causa.

As próprias diferenças culturais que cada língua encerra dentro do binómio significado-significante seriam suficientes para que essa ilusão se alimentasse. É, sem dúvida, por isso que é mais aliciante (e mais difícil) traduzir peças de línguas conjunturalmente muito diferentes da nossa. É também por isso que, quanto mais diversa a estrutura linguística – à qual corresponde um mundo subjacente – mais “erros” contem a tradução. Ou, como dizem os italianos: “Traduttore, traditore”, adágio célebre para explicar que o tradutor é um traidor... mesmo que não queira!

As crónicas de opinião são para os jornais o que as short-stories são para a literatura, mutatis mutandis. São géneros de eleição da contemporaneidade. Não há tempo para romances, não há alma para poesia,  e as pessoas precisam de narrativas que as preencham sem lhes roubar minutos em descrições, querem algo intenso e evolutivo mas tudo no contra-relógio do coelho de Alice.

No entanto, as crónicas cansam porque hoje todos são cronistas quanto mais não seja em blogs. E é por isso que tento fazer crónicas um pouco além da minha rua, que explorem o nosso interior sem nos roubar tempo para ele.