... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, March 27, 2015

A Luta Pela Vida de Ashya

Ashya King é um menino nascido em Espanha com nacionalidade britânica, agora com cinco anos, a quem foi diagnosticado um tumor cerebral. Em Agosto passado, Ashya foi submetido a uma operação no Southampton General Hospital. Infelizmente, o tipo de cancro do qual Ashya sofria era um meduloblastoma agressivo, e embora a cirurgia tivesse corrido da melhor forma, os riscos de “recaída” foram sempre admitidos como bastante grandes. De acordo com as indicações do Hospital, a criança devia iniciar um tratamento de quimioterapia quatro semanas após a cirurgia.

Os pais de Ashya, Brett e Naghemeh King, fizeram uma coisa pouco popular em qualquer parte do mundo: decidiram pensar pela sua própria cabeça e tentar saber quais eram as hipóteses do filho mediante os tratamentos possíveis. Foi assim que descobriram que os tratamentos de quimioterapia em crianças pequenas com esta patologia não tinham evidências de sucesso desde 2013 – isto para além de serem altamente debilitantes para uma criança fraca e jovem. Mais importante: as hipóteses de sobrevivência de Ashya não seriam mais otimistas do que 5%.

Na sequência desta pesquisa, os King também repidamente descobriram que havia outro tratamento possível: a terapia de raios de protões. Esta terapia pertence às radioterapias possíveis e é um dos mais recentes tratamentos para o cancro. Como tal, apenas se faz nalguns locais do mundo e, ainda assim, dados os seus elevadíssimos custos, é necessário riqueza pessoal para custear o tratamento… Ou, em alternativa, ser referido por um Hospital para o fazer e, consequentemente, ser re-encaminhado para os centros de tratamento existentes. O Southampton General Hospital recusou a possibilidade que os pais de Ashya colocaram, e explicou que desde 2008 apenas 400 pacientes tinham sido elegíveis para esse tipo de terapia.  Os King decidiram, então, vender o que tinham e embarcar eles próprios no que consideraram ser mais correto.

Levaram a criança para Málaga, primeiro. Ao fazê-lo, foram contra ordens médicas inglesas e contra o Governo Britânico.  Como tal, o Tribunal emitiu um mandato de captura e os King foram presos – é provável que ninguém tenha pensado que um menino de cinco anos, com meduloblastoma ficou sem a sua referência e companhia no que podiam ter sido os seus últimos tempos de vida. Mas adiante: os King acabaram por ser libertados porque o Crown Prosecution Service emitiu um comunicado dizendo que não havia “provas suficientes para condenação por uma ofensa criminal.” Os King acharam necessário dizer que não estavam contra a Inglaterra porque a opinião pública atirou com a ideia de que eram ingratos aos seu país e que eram Testemunhas de Jeová. Se eram ou não, não sei. Mas não me parece o mais importante neste caso.

Aí, os King levaram Ashya para Praga na Rep. Checa, onde lhe foi feito o tratamento de raios de protões, uma terapia também muito forte, como são todas as destas patologias. Inicialmente, Ashya continuava sem movimentos e sem fala. Três meses depois, começou a andar e a ter resposta verbal. Esta semana, foi comunicado que Ashya está livre do meduloblastoma. Aqui há uma salvaguarda, visto que todos sabemos que este tipo de doença pode voltar a re-aparecer… Mas, no momento, Ashya não a tem e as suas chances de sobrevivência aumentaram para 80%. A opinião pública – tipicamente sempre do lado do vencedor – virou ao contrário: agora os King são uns heróis que lutaram contra o sistema pela cura do filho pequeno.

Não sou médica, pelo que me inibo de emitir opinião clínica. No entanto, como ser humano e mãe interrogo-me: não faria eu, também, tudo o que achasse mais provável ser benéfico para a criança, independentemente das ordens de um país?

A opinião pública é irrelevante, mas fica-me a questão: até onde deve o Estado interferir neste tipo de decisões? 

Friday, March 13, 2015

Só quando é preciso...




Das melhores campanhas contra a violência que vi foram aquelas em que entram as personagens encantadoras dos filmes Disney.
O autor é um artista que usa o pseudónimo Saint Hoax e cujos trabalhos versam destruir o que chama de “enganos maliciosos que se repetem ao longo da História humana”, uma revolta contra aquilo de que ninguém quer falar por ser demasiado chocante.

A primeira campanha versava o tema da violação de crianças pelos seus familiares, nomeadamente progenitores. Saint Hoax, que colheu inspiração para este trabalho ao descobrir que uma amiga sua tinha sido violada pelo pai aos 7 anos de idade, escolheu chamar à campanha “Princest Diaries”, um jogo de palavras entre Princess e Incest. O objectivo da campanha era encorajar as pessoas a não se calarem perante esta situação, salientando que mesmo as histórias de encantar que nos vendem desde o berço podem esconder verdades assustadoras. A campanha mostra personagens Disney – Ariel, a Bela Adormecida, Jasmine, Pinóquio, Hércules – a serem beijados na boca pelos pais, estando eles aterrorizados com a situação. Nos posters, pode ler-se “46% dos menores violados são vítimas de familiares. Nunca é tarde demais para reportar um ataque.”

Esta campanha foi absolutamente criticada por muitos progenitores, sobretudo mamãs, que se indignaram pela fantasia ideal da sua infância estar a ser utilizada como expressão de uma realidade tão escondida quanto cruel. Fizeram-se campanhas contra o autor, argumentando “nunca mais verei a Disney da mesma forma”; “ele destrói as nossas mais puras ilusões” e “como vou explicar à minha filha que a Bela Adormecida está a ser abusada pelo pai? Isto é nojento e indecoroso.” Compreendo que as pessoas não queiram ver destruídas as suas fantasias – tanto no que toca ao imaginário Disney como no que toca ao imaginário da família enquanto instituição ideal de amor puro. Mas estas pessoas não pararam para pensar no seguinte: se lhes custa perder estas ilusões infantis (e sublinhe-se ilusão) quanto custará a uma criança a realidade (realidade!) de ser abusada por quem a devia proteger? Um milhão de vezes mais. E quanto custará o silêncio de quem sofre só para não perturbar o ideal podre de quem não quer encarar uma crueldade de frente? Uma mentira cor de rosa ajuda a suportar uma realidade atroz? E, se sim, a quem ajuda a viver?

A segunda campanha de Saint Hoax chama-se Happy Never After. Mais um jogo de palavras evidente, desta vez para retratar a violência doméstica. Várias princesinhas Disney aparecem com nódoas negras e ensanguentadas sobre a mensagem “Quando é que deixaram de te tratar como uma Pirncesa? Nunca é tarde demais para pôr um fim a isso.” Sait Hoax explica querer demonstrar que nem mesmo as figurinhas que parecem viver um conto de fadas estão livres de ser maltratadas. O artista levou esta mensagem mais longe no Dia Internacional da Mulher, mostrando personagens Disney (como a Cinderela no fim da sua história, já liberta de farrapos e vestida como um sonho) tendo por companheira… a si própria, em vez do Princípe. O poster diz “Porquê esperar para ser salva quando te podes salvar a ti própria?”

A campanha do abuso relativamente a adultos foi bem mais tolerada e até encorajada. De facto, a sociedade admite já este problema e começa a sentir-se relativamente à vontade para o expôr. Mas o abuso de crianças continuará ser uma verdade bem mais escondida e contra a qual muitos se insurgem por isso lhes destruir um conto de fadas que é o seu arquétipo interno. Será assim por muito tempo porque as crianças não têm voz activa na nossa sociedade nem são consideradas em seu pleno direito, mas sim como seres humanos de segunda, subordinadas a familiares “proprietários”.

Toda esta mentalidade me recorda uma menina açoriana que andava sempre visivelmente maltratada e a quem perguntaram certa vez “Diz francamente… Batem-te?” Ao que ela, muito resignada e obediente, respondeu “Não. Em minha casa são meus amigos. Só me batem quando é preciso.”