... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, March 13, 2015

Só quando é preciso...




Das melhores campanhas contra a violência que vi foram aquelas em que entram as personagens encantadoras dos filmes Disney.
O autor é um artista que usa o pseudónimo Saint Hoax e cujos trabalhos versam destruir o que chama de “enganos maliciosos que se repetem ao longo da História humana”, uma revolta contra aquilo de que ninguém quer falar por ser demasiado chocante.

A primeira campanha versava o tema da violação de crianças pelos seus familiares, nomeadamente progenitores. Saint Hoax, que colheu inspiração para este trabalho ao descobrir que uma amiga sua tinha sido violada pelo pai aos 7 anos de idade, escolheu chamar à campanha “Princest Diaries”, um jogo de palavras entre Princess e Incest. O objectivo da campanha era encorajar as pessoas a não se calarem perante esta situação, salientando que mesmo as histórias de encantar que nos vendem desde o berço podem esconder verdades assustadoras. A campanha mostra personagens Disney – Ariel, a Bela Adormecida, Jasmine, Pinóquio, Hércules – a serem beijados na boca pelos pais, estando eles aterrorizados com a situação. Nos posters, pode ler-se “46% dos menores violados são vítimas de familiares. Nunca é tarde demais para reportar um ataque.”

Esta campanha foi absolutamente criticada por muitos progenitores, sobretudo mamãs, que se indignaram pela fantasia ideal da sua infância estar a ser utilizada como expressão de uma realidade tão escondida quanto cruel. Fizeram-se campanhas contra o autor, argumentando “nunca mais verei a Disney da mesma forma”; “ele destrói as nossas mais puras ilusões” e “como vou explicar à minha filha que a Bela Adormecida está a ser abusada pelo pai? Isto é nojento e indecoroso.” Compreendo que as pessoas não queiram ver destruídas as suas fantasias – tanto no que toca ao imaginário Disney como no que toca ao imaginário da família enquanto instituição ideal de amor puro. Mas estas pessoas não pararam para pensar no seguinte: se lhes custa perder estas ilusões infantis (e sublinhe-se ilusão) quanto custará a uma criança a realidade (realidade!) de ser abusada por quem a devia proteger? Um milhão de vezes mais. E quanto custará o silêncio de quem sofre só para não perturbar o ideal podre de quem não quer encarar uma crueldade de frente? Uma mentira cor de rosa ajuda a suportar uma realidade atroz? E, se sim, a quem ajuda a viver?

A segunda campanha de Saint Hoax chama-se Happy Never After. Mais um jogo de palavras evidente, desta vez para retratar a violência doméstica. Várias princesinhas Disney aparecem com nódoas negras e ensanguentadas sobre a mensagem “Quando é que deixaram de te tratar como uma Pirncesa? Nunca é tarde demais para pôr um fim a isso.” Sait Hoax explica querer demonstrar que nem mesmo as figurinhas que parecem viver um conto de fadas estão livres de ser maltratadas. O artista levou esta mensagem mais longe no Dia Internacional da Mulher, mostrando personagens Disney (como a Cinderela no fim da sua história, já liberta de farrapos e vestida como um sonho) tendo por companheira… a si própria, em vez do Princípe. O poster diz “Porquê esperar para ser salva quando te podes salvar a ti própria?”

A campanha do abuso relativamente a adultos foi bem mais tolerada e até encorajada. De facto, a sociedade admite já este problema e começa a sentir-se relativamente à vontade para o expôr. Mas o abuso de crianças continuará ser uma verdade bem mais escondida e contra a qual muitos se insurgem por isso lhes destruir um conto de fadas que é o seu arquétipo interno. Será assim por muito tempo porque as crianças não têm voz activa na nossa sociedade nem são consideradas em seu pleno direito, mas sim como seres humanos de segunda, subordinadas a familiares “proprietários”.

Toda esta mentalidade me recorda uma menina açoriana que andava sempre visivelmente maltratada e a quem perguntaram certa vez “Diz francamente… Batem-te?” Ao que ela, muito resignada e obediente, respondeu “Não. Em minha casa são meus amigos. Só me batem quando é preciso.”