... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 24, 2015

Je suis un migrant africain


Ainda não ouvi ninguém a dizer “Je suis Lampedusa”. O que moveu cordões e cordões de pessoas a andarem de cartazes “Je suis Charlie” não parece surtir o mesmo efeito quando se trata de um número mais elevado de mortes em condições tão sub-humanas. Se calhar é porque a revista Charlie Hebdo era, a seu modo, famosa e também porque há sempre um bom motivo para alimentar o ódio ao que dizem ser a grande ameaça de paz mundial. 

Pessoalmente, estou convencida que a fome e a miséria são ameaças tão grandes ou maiores do que o terrorismo. E se é pela paz que tememos, imaginemos o que podem fazer grupos de pessoas que querem sobreviver a todo o custo – o instinto mais humano que há. Quando as pessoas não têm nada, não há nada que possam perder. Há uma margem perigosamente grande de vazio em qualquer desespero. 

Em 2013, todos recordamos dois naufrágios de navios com emigrantes que ocorreram ao largo de Lampedusa. Já na época o Primeiro Ministro italiano admitiu publicamente que havia naufrágios consideráveis desde 2009. Em 2013, os dois naufrágios aconteceram ambos em Outubro e a Europa não teve remédio senão prestar atenção, já que tanto Itália como Malta destravaram a língua para falar do assunto. 

Na época, os emigrantes vinham da Líbia, do Sudão, da Somália, da Palestina, da Síria e mesmo da Tunísia. As autoridades italianas e maltesas prenderam algumas pessoas por tráfico humano. De facto, todos os emigrantes tinham dado tudo o que tinham para vir ilegalmente para a Europa e os que não tinham podido pagar pagaram literalmente com o corpo (as violações de mulheres e os raptos de crianças foram uma das “moedas de troca”). Na época, a Europa disponibilizou cerca de 30 mil euros para apoio aos refugiados que procuravam abrigo em Itália. 

O recente naufrágio que envolveu mais de 2000 emigrantes voltou a acender a discussão. Mas não vi nenhuma marcha de líderes mundiais – semelhante à de Charlie, onde apregoavam o direito à liberdade de expressão. Vá lá, compreendo que seja uma coisa “somenos” para os senhores de gravata: afinal, falamos apenas de alguns africanos que provém de países miseráveis; ninguém chegará a capa de jornal pela sua defesa. Só os incomoda um bocadinho que isto seja tudo gente a querer entrar na Europa. 

O Primeiro Ministro italiano, Matteo Renzi, tem apelado a esforços conjuntos da Europa e da ONU para dar cabo desta “escravatura moderna”. Renzi opina que nunca se viu um surto de foragidos e / ou de tráfico assim e que toda a Europa se devia mobilizar para responder aos pedidos de asilo bem como a ONU devia intervir nos países de origem. Joseph Muscat, Primeiro Ministro de Malta, junta-se em coro e pede que o mundo olhe para África com olhos de ver. A União Africana solicita uma legalização da emigração ao passo que a Interpol promete ajudar a acabar com a situação. O programa Triton – introduzido recentemente – serve para patrulhar o Mediterrâneo e ajudar os refugiados, mas já provou ser uma solução absolutamente insuficiente. 

A Europa – preocupada com as situações precárias da Grécia, de Portugal, de Espanha e até da própria Itália – não tem muito vagar para se preocupar com a pobreza de algumas nações africanas. Mas parece bem claro que terá de o fazer. Este é um mundo declaradamente em mudança. A mesma Europa que franze o nariz à situação financeira da Grécia - país que não deixa de ser o berço cultural da Europa - é a Europa que tem de enfrentar a realidade que o Mediterrâneo deixou de ser apenas o mar por excelência dos barcos de cruzeiro e do turismo; é também um cemitério.

Friday, April 10, 2015

As Pessoas Preocupadas


Preocupam-me as pessoas preocupadas. E elas são muitas. Cresceram com a sociedade de (des)informação. Têm muita teoria e nenhuma prática. São especialistas sem chegarem a usufruir plenamente do seu estatuto de seres pensantes. Não agem mas discutem – embora os seus argumentos careçam de racionalidade – e, sobretudo, têm a testa franzida, o nariz metediço, uma língua que não descansa. Estão, enfim, seriamente preocupadas com tudo sem nada fazer para o resolver.  

Há muitos géneros de pessoas preocupadas. São aquelas que se batem arduamente pelos direitos dos animais, mas são incapazes de recolher um cão da rua; são as que têm uma proclamada pena dos miseráveis refugiados que aparecem na televisão, mas têm um asco muito particular pelos imigrantes que vivem na sua zona; são as que acreditam na igualdade de direitos, mas só desde que possam continuar a dominar; são as que têm afilhados num país do Terceiro Mundo, para onde enviam uma contribuição anual, mas ficariam incomodadas de lhes tocar; as que teorizam, plenas de certezas, sobre os interesses das crianças e o que lhes faz bem, mas cujos filhos têm olhos infelizes e medo de abrir a boca ao pé delas; as que estão aflitas com a venda e o tráfico humano no Gana mas fecham os olhos ao caso do vizinho que, claramente, abusa dos filhos; são aquelas que fazem grandes posts no Facebook e tweetam como loucas sobre as injustiças deste mundo, achando que isso é o seu contributo para as minorar; as que dizem acreditar na força e beleza da arte, mas vão a concertos para serem fotografadas nas revistas sociais e bocejam com a música; as que defendem a educação mas não contribuem activamente para que ela exista; as que advogam o bom aspecto e se esquecem da essência; as que são sempre presentes em todas as missas e celebrações religiosas mas são incapazes de um rasgo de atitude benevolente ou justa; as que falam sobre a saúde para todos mas se enojam com as feridas dos que vêem na sala de espera do Hospital; as que falam no brilho da juventude mas não conseguem lidar com o facto de já não serem jovens ou as que falam no muito que há a aprender com a maturidade mas fecharam a mãe num lar onde não voltaram a pôr os pés; as que dão conselhos sobre exercício e dieta, mas rebentam-lhes as costuras dos vestidos e os botões das camisas; as que defendem a paz e o amor, mas nem em sua casa os promovem; as que enchem a boca com o direito à alegria mas incomoda-as a alegria dos outros; as que tomam posições sem saber dos conteúdos; as que falam de generosidade e têm as mãos fechadas; as que dão conferências sobre o papel da mulher e secretamente desconsideram todas as mulheres só por o serem; as que rotulam os filhos de autistas porque eles são tímidos ou de hiperactivos porque são, simplesmente, crianças; as que falam de igualdade de direitos dos homens, sendo reverentes ao poder e tiranas para com os restantes; as que têm um título e muitas entradas enciclopédicas mas descuram a ideologia e a profundidade das obras; as que acreditam em tudo o que lhes dizem e não páram para pensar; as que riem a todos e a todos desdenham; as que enchem sacos para as associações e orfanatos mas não dão um ovo ao vizinho quando lho falta; aquelas a quem Sophia de Mello Breyner chamava “as pessoas sensíveis, que não gostam de matar galinhas mas gostam de comer galinhas”; ... 

Preocupam-me. São as pessoas preocupadas que me causam uma testa franzida, uma reserva em as escutar, um espanto pela sua falta de sensibilidade e de coragem. As pessoas preocupadas são muito preocupantes.