Ainda não ouvi ninguém a dizer “Je suis Lampedusa”. O que moveu cordões e cordões de pessoas a andarem de cartazes “Je suis Charlie” não parece surtir o mesmo efeito quando se trata de um número mais elevado de mortes em condições tão sub-humanas. Se calhar é porque a revista Charlie Hebdo era, a seu modo, famosa e também porque há sempre um bom motivo para alimentar o ódio ao que dizem ser a grande ameaça de paz mundial.
Pessoalmente, estou convencida que a fome e a miséria são ameaças tão grandes ou maiores do que o terrorismo. E se é pela paz que tememos, imaginemos o que podem fazer grupos de pessoas que querem sobreviver a todo o custo – o instinto mais humano que há. Quando as pessoas não têm nada, não há nada que possam perder. Há uma margem perigosamente grande de vazio em qualquer desespero.
Em 2013, todos recordamos dois naufrágios de navios com emigrantes que ocorreram ao largo de Lampedusa. Já na época o Primeiro Ministro italiano admitiu publicamente que havia naufrágios consideráveis desde 2009. Em 2013, os dois naufrágios aconteceram ambos em Outubro e a Europa não teve remédio senão prestar atenção, já que tanto Itália como Malta destravaram a língua para falar do assunto.
Na época, os emigrantes vinham da Líbia, do Sudão, da Somália, da Palestina, da Síria e mesmo da Tunísia. As autoridades italianas e maltesas prenderam algumas pessoas por tráfico humano. De facto, todos os emigrantes tinham dado tudo o que tinham para vir ilegalmente para a Europa e os que não tinham podido pagar pagaram literalmente com o corpo (as violações de mulheres e os raptos de crianças foram uma das “moedas de troca”). Na época, a Europa disponibilizou cerca de 30 mil euros para apoio aos refugiados que procuravam abrigo em Itália.
O recente naufrágio que envolveu mais de 2000 emigrantes voltou a acender a discussão. Mas não vi nenhuma marcha de líderes mundiais – semelhante à de Charlie, onde apregoavam o direito à liberdade de expressão. Vá lá, compreendo que seja uma coisa “somenos” para os senhores de gravata: afinal, falamos apenas de alguns africanos que provém de países miseráveis; ninguém chegará a capa de jornal pela sua defesa. Só os incomoda um bocadinho que isto seja tudo gente a querer entrar na Europa.
O Primeiro Ministro italiano, Matteo Renzi, tem apelado a esforços conjuntos da Europa e da ONU para dar cabo desta “escravatura moderna”. Renzi opina que nunca se viu um surto de foragidos e / ou de tráfico assim e que toda a Europa se devia mobilizar para responder aos pedidos de asilo bem como a ONU devia intervir nos países de origem. Joseph Muscat, Primeiro Ministro de Malta, junta-se em coro e pede que o mundo olhe para África com olhos de ver. A União Africana solicita uma legalização da emigração ao passo que a Interpol promete ajudar a acabar com a situação. O programa Triton – introduzido recentemente – serve para patrulhar o Mediterrâneo e ajudar os refugiados, mas já provou ser uma solução absolutamente insuficiente.
A Europa – preocupada com as situações precárias da Grécia, de Portugal, de Espanha e até da própria Itália – não tem muito vagar para se preocupar com a pobreza de algumas nações africanas. Mas parece bem claro que terá de o fazer. Este é um mundo declaradamente em mudança. A mesma Europa que franze o nariz à situação financeira da Grécia - país que não deixa de ser o berço cultural da Europa - é a Europa que tem de enfrentar a realidade que o Mediterrâneo deixou de ser apenas o mar por excelência dos barcos de cruzeiro e do turismo; é também um cemitério.