... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, May 22, 2015

Beijinhos, amiguinhos e docinhos

O desacordo semântico é tantas vezes aplaudido e incentivado pela nossa sociedade. Os erros sintáticos e semânticos perturbam-me bastante mais do que os ortográficos, embora a moda corrente seja investir na ortografia. A meu ver, quando há erros na relação e ordenação das palavras no discurso ou quando há incoerências de sentido, a comunicação fica bastante mais comprometida do que ficaria pela existência de um erro de escrita.

A este respeito, tenho um “pet peeve”, algo que em português seria traduzido como “odiozinho de estimação”. Perturba-me o uso de adjetivos e de advérbios que são absolutos pleonasmos do nome ou verbo que caracterizam. O mesmo se aplica aos que caracterizam por antagonia. O problema é que o seu uso – extremamente vulgarizado, aliás – acaba por retirar significado real ao nome. Alguns exemplos concretos explicam melhor.

Primeiro, “beijinhos grandes”. Por regra, qualquer diminutivo aponta para uma forma menor do nome. Logo, um beijinho será sempre menor do que um beijo. Se os queremos caracterizar como grandes, a primeira coisa a fazer seria livrarmo-nos do “inho”. Irrita-me terrivelmente quando se despedem de mim com esta fórmula. Querem ser grandes? Mandem-me beijos. O “beijinho grande” não existe por impossibilidade empírica. A resposta aos meus argumentos costuma ser “ah, mas sabes que beijinho é a despedida comum enquanto beijo já soa mais íntimo”. Posso concordar. O que não concordo é que quem me quer dar um beijinho queira paradoxalmente transformá-lo em grande. A nível imagético, um beijinho pode ser um leve roçar de lábios mas aumentado (errada e ridiculamente) para grande já vem lambuzadíssimo de saliva e torna-se demorado. Beijinho grande é uma contradição gramaticalmente impossível.

Segundo, “amigo pessoal”. Também está na moda distinguir entre os amigos pessoais e os outros, os que são só amigos sem nada de pessoal. Ora, isto também não encontra lugar na realidade. Um amigo (“amicus” em latim) possui em comum com o verbo amar (“amare”) uma raiz gramatical. Logo, um amigo é aquele que ama. Se ama, é seguramente algo de pessoal. É incompreensível a distinção entre um amigo e um amigo pessoal. É que os amigos são todos pessoais; caso contrário, não podem ser amigos. O que costumam argumentar é “pois, mas nós dizemos isso para separar os amigos daqueles que apenas conhecemos de passagem”. Mas pessoas que conhecemos e amamos menos não são amigos… são conhecidos. O conhecimento produz (ou não) amizade. É por isso que em hebraico os verbos “amar” e “conhecer” (“yodea”) são sinónimos. E como bem sabemos não há tempo para conhecer toda a gente.

Terceiro, “brutalmente agredido”. Não há agressão que não seja brutal. Se alguém foi agredido, isto é atacado, magoado, etc, impossível é pensar que o terá sido à força de carícias ou de meiguice. Só se concebe qualquer agressão se esta for feita com recurso à violência. Caso contrário, não é agressão. Irritam-me profundamente as notícias que dizem “X foi brutalmente violada por Y”. Mas há lá forma de ter sido suavemente violada? Enfim, se calhar o tipo deu-lhe um abracinho enquanto a penetrava à força. Ou, melhor ainda, agiu contra a liberdade de X, magoando-a, mas disse “é tudo para teu bem, amor”. Tenham paciência mas não pode ser. Qualquer situação de abuso é brutal. Ao dizerem “brutalmente agredido” estão a implicar que há casos de agressão que não são brutais. São mais fofinhos. E esses, eventualmente, podem perdoar-se porque não chegam a ser duros. Apetece dizer a estas pessoas que advogam a “agressão amorosa” que se sujeitem a ela.


É urgente reformular o uso dos adjetivos e dos advérbios. Isto anda a empobrecer a língua e a trazer conotações estranhas e não verídicas. Venham os beijos, os amigos e as agressões na sua pureza linguística. Sem contradições. 

Friday, May 8, 2015

A Teoria dos Anéis

É natural não sabermos o que dizer a alguém que está a passar por uma situação absurdamente difícil. Primeiro, porque, na maior parte das vezes, não fazemos ideia do que seja passar por isso e por outro lado porque é fácil esquecermo-nos do que é verdadeiramente importante: a outra pessoa e a sua experiência, não nós e a nossa.

A pensar nisso, Emily McDowell lançou recentemente uma série de postais que ela cognominou de “postais empáticos”. São para oferecer a alguém que está a atravessar problemas sérios, como doenças terminais, por exemplo. A ideia é que a generalidade dos postais convencionais que se veem por aí não são apenas totalmente desadequados; podem chegar a ser ofensivos. Por exemplo, dar a quem tem cancro um cartão que diz “Get well soon” ou “I wish I could be as brave as you are”.

Pesquisando sobre este tema, em breve se chega à conclusão que as pessoas que passam por situações complexas sentem que a maior parte do que lhes dizem é absolutamente deslocado ou até torna as coisas piores. Alguns dos seus amigos têm consciência disso mesmo e é (também) por isso que quando se está a viver um mau momento há tanta gente que se afasta – nem é por mal, é porque não sabem qual seja a melhor maneira de reagir. No entanto, sentir-se só também não é o que alguém em dificuldades precisa. Então o que fazer?

Um artigo de Silk e Goldman no LA Times “How not to say the wrong thing” tem a resposta para as crises médicas, legais ou existenciais. A regra de ouro é o conforto do outro, esse que está no centro do problema. A título de exemplo: X tem cancro, está no hospital e não quer receber visitas. Mas a amiga que quer muito visitá-la diz “This is not only about you!” Ah não?! Espera aí… X está doente mas isso diz respeito a quem quer satisfazer os seus desejos de compaixão? Ou não será que diz respeito a X, que sente e lida com o assunto e tem direito a fazê-lo da melhor maneira que entender?

Silk faz uso daquilo a que chama a Teoria dos Anéis. Segundo esta, no centro de um primeiro anel está a pessoa que sofre o problema na pele - um cancro, um aborto, uma violação, uma morte. Outro anel mais largo à roda do primeiro diz respeito às pessoas que, embora não sofrendo diretamente o problema, são afetadas por ele dada a sua relação de intimidade com quem sofre. Outro anel ainda mais largo diz respeito aos familiares e amigos mais distantes, e assim por diante. Então, quem está no centro do anel pode queixar-se de tudo a todos, dizer o que lhe passar pela cabeça, porque o sofrimento dela é isso mesmo: é dela. As pessoas que estão no anel seguinte podem ter essa atitude com as que estão nos anéis mais largos, mas não com ela. E assim sucessivamente: há que “explodir” com quem está nos anéis mais largos que o nosso e ajudar quem está nos anéis mais restritos. Portanto, a pessoa no centro do anel pode gritar “Mas porquê eu?”, culpar o mundo e insurgir-se contra Deus. Os restantes também podem falar de como se sentem mal eles próprios… mas não com quem se sente ainda pior do que eles. Não têm esse direito.

Da mesma forma, conselhos e “eu sei o que sentes” são absolutamente dispensáveis. As pessoas a passar por um processo de trauma não ficam melhores com conselhos, mas sim com apoio.  Sim, “this is not about you people; it’s about the suffering one.”


Sumarizando, encontrei entre os postais de McDowell um que eu gostaria de dizer aos amigos que passam por momentos maus – e que, paralelamente, também gostaria que me dissessem. É só isto: “Deixa-me ser o primeiro a dar um soco na próxima pessoa que te disser que tudo neste mundo acontece por uma razão.”