O desacordo semântico é tantas
vezes aplaudido e incentivado pela nossa sociedade. Os erros sintáticos e semânticos
perturbam-me bastante mais do que os ortográficos, embora a moda corrente seja
investir na ortografia. A meu ver, quando há erros na relação e ordenação das
palavras no discurso ou quando há incoerências de sentido, a comunicação fica
bastante mais comprometida do que ficaria pela existência de um erro de
escrita.
A este respeito, tenho um “pet
peeve”, algo que em português seria traduzido como “odiozinho de estimação”.
Perturba-me o uso de adjetivos e de advérbios que são absolutos pleonasmos do
nome ou verbo que caracterizam. O mesmo se aplica aos que caracterizam por
antagonia. O problema é que o seu uso – extremamente vulgarizado, aliás – acaba
por retirar significado real ao nome. Alguns exemplos concretos explicam
melhor.
Primeiro, “beijinhos grandes”.
Por regra, qualquer diminutivo aponta para uma forma menor do nome. Logo, um
beijinho será sempre menor do que um beijo. Se os queremos caracterizar como
grandes, a primeira coisa a fazer seria livrarmo-nos do “inho”. Irrita-me
terrivelmente quando se despedem de mim com esta fórmula. Querem ser grandes?
Mandem-me beijos. O “beijinho grande” não existe por impossibilidade empírica.
A resposta aos meus argumentos costuma ser “ah, mas sabes que beijinho é a
despedida comum enquanto beijo já soa mais íntimo”. Posso concordar. O que não
concordo é que quem me quer dar um beijinho queira paradoxalmente transformá-lo
em grande. A nível imagético, um beijinho pode ser um leve roçar de lábios mas
aumentado (errada e ridiculamente) para grande já vem lambuzadíssimo de saliva e
torna-se demorado. Beijinho grande é uma contradição gramaticalmente
impossível.
Segundo, “amigo pessoal”. Também
está na moda distinguir entre os amigos pessoais e os outros, os que são só
amigos sem nada de pessoal. Ora, isto também não encontra lugar na realidade.
Um amigo (“amicus” em latim) possui em comum com o verbo amar (“amare”) uma raiz
gramatical. Logo, um amigo é aquele que ama. Se ama, é seguramente algo de
pessoal. É incompreensível a distinção entre um amigo e um amigo pessoal. É que
os amigos são todos pessoais; caso contrário, não podem ser amigos. O que
costumam argumentar é “pois, mas nós dizemos isso para separar os amigos daqueles
que apenas conhecemos de passagem”. Mas pessoas que conhecemos e amamos menos
não são amigos… são conhecidos. O conhecimento produz (ou não) amizade. É por
isso que em hebraico os verbos “amar” e “conhecer” (“yodea”) são sinónimos. E
como bem sabemos não há tempo para conhecer toda a gente.
Terceiro, “brutalmente agredido”.
Não há agressão que não seja brutal. Se alguém foi agredido, isto é atacado,
magoado, etc, impossível é pensar que o terá sido à força de carícias ou de
meiguice. Só se concebe qualquer agressão se esta for feita com recurso à
violência. Caso contrário, não é agressão. Irritam-me profundamente as notícias
que dizem “X foi brutalmente violada por Y”. Mas há lá forma de ter sido suavemente
violada? Enfim, se calhar o tipo deu-lhe um abracinho enquanto a penetrava à
força. Ou, melhor ainda, agiu contra a liberdade de X, magoando-a, mas disse “é
tudo para teu bem, amor”. Tenham paciência mas não pode ser. Qualquer situação
de abuso é brutal. Ao dizerem “brutalmente agredido” estão a implicar que há
casos de agressão que não são brutais. São mais fofinhos. E esses,
eventualmente, podem perdoar-se porque não chegam a ser duros. Apetece dizer a
estas pessoas que advogam a “agressão amorosa” que se sujeitem a ela.
É urgente reformular o uso dos
adjetivos e dos advérbios. Isto anda a empobrecer a língua e a trazer
conotações estranhas e não verídicas. Venham os beijos, os amigos e as
agressões na sua pureza linguística. Sem contradições.