... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, February 26, 2016

O Velho da Porta da Igreja


Deixam-no estar à porta da igreja (só à porta, não dentro) e ele lá está com um saco plástico rebentado. Hoje estava a chorar disfarçadamente e diz-me: “Menina, ajude-me com alguma coisa para comer.” Remexo na mala à procura de moedas e, entretanto, passa uma senhora que resmunga: “Não querem trabalhar, é mais fácil pedir” E o velho, desculpando-se, diz-me: “Mas quem é que me dava trabalho, com esta idade e este aspeto? A menina acha que eu tenho gosto em andar na rua? Gosto nenhum! Ainda esta noite me roubaram as mantas e agora nem tenho com que me cobrir!”
Na sua miséria, descubro que há misérias mais profundas e degraus de ética entre os que vivem sem casa porque bem percebo a repulsa que sente por outro mendigo ter sido capaz de lhe roubar as mantas.

“Mas o senhor dorme onde?” pergunto eu, que já desisti de procurar uma moeda – aliás um hábito bem mesquinho frente a quem não tem nada e nos vê passar de carteira na mão, tendo em conta que aquilo que se pode comprar com uma moeda (mesmo de dois euros) não vai além de uma sanduíche. “Durmo aqui” diz ele, e acrescenta que não é o único. “E porque é que não vai dormir para um abrigo?” aconselho eu, achando (como todos) que estou cheia de ideias luminosas para resolver – nem que seja temporariamente – a situação, e que essas brilhantes soluções nunca ocorreram a quem sofre o problema na pele.

“Há 3 anos que estou inscrito para conseguir lugar num abrigo, menina. Ficaram de me chamar quando tivessem vaga. A vaga nunca aparece. Faz ideia da quantidade de gente que dorme na rua nesta cidade? São tantos. Eu espero há 3 anos; outros esperam há muito mais. As pessoas dizem que gostamos da vida na rua. Não sabem do que estão a falar… a gente quer é sair daqui. Soubessem as pessoas o que isto é: o Inverno sem telhas, um frio que mata gente. A chuva molha e uma pessoa não seca, dias seguidos. O mau tempo é tão mau como a fome.”

Há cinco dias que chove em Lisboa. Hoje estão 3 graus. É muito claro para mim que o homem tem vestida toda a roupa que tem. É difícil dizer de que cor já foi esta roupa, talvez castanha, talvez cinzenta, o gorro está-lhe pequeno, as botas gritam por substituição e obrigam-no a andar de forma estranha. É curioso que, contrariamente à esmagadora maioria dos sem-abrigo, ele não cheire mal, um resto de orgulho humano que procura preservar a todo o custo.

“Mas o senhor não come com a ajuda da carrinha?” pergunto eu, que vejo a carrinha de apoio alimentar aos sem-abrigo passar a dar-lhes jantar à noite. É certo que o jantar não lhes salva a vida nem lhes restitui a humanidade mas é uma iniciativa que dá algum calor. “Como. A carrinha passa por aqui às 10 e meia da noite” responde ele, como um relógio. Penso para mim que é tarde, mas a carrinha vai a outros lugares primeiro e a outros ainda depois. E o velho, sempre de voz suave, mas numa pequena revolta diz-me: “Veja bem, se todo o homem comesse apenas às dez e meia da noite… É muito difícil aguentar…” E será, de certeza, já que bem perto estamos das pastelarias, algumas bem refinadas (“Lisboa é a capital do pastel”), que libertam o aroma a bolos e café. “Eu tenho de ir aos restos dos pratos e aos caixotes procurar comida! E custa-me quando só encontro espinhas! Mas também as como!” revela ele, com nojo mas sem perder a dignidade.


Enfim, dou-lhe dinheiro. Mas sinto-me impotente para resolver o que quer que seja. Afinal, que faço eu de realmente importante? Nada. A quem me dirijo para resolver isto? Não sei. Acresce que, por experiência, já percebi que as pessoas com melhor status de vida são as que menos ajudam os mais desfavorecidos. Mas o velho agradece-me efusivamente e diz-me, como num velho presságio da Antiguidade: “Não se vai arrepender de ter ajudado este velho. Eu hoje acordei e pensei que me queria matar, sabe? Não queria ver outras manhãs. Mas agora vou andando… em frente. E ainda a hei de voltar a ver. Noutro dia.” 

Friday, February 12, 2016

As pessoas com tendência à felicidade

“Mas o que é que lhe aconteceu para estar com essa cara toda sorridente, hã? Você até tem muitos motivos para andar maldisposta, que eu bem sei… Diga lá, qual é a razão desse seu ar luminoso?" É quase escandalosa a frequência com que ouço isto. As pessoas que não têm tendência à depressão quase que têm de pedir desculpa ao resto do mundo por não andarem de trombas. Sim, acontece-lhes tudo o que acontece aos outros (ou, de facto, até lhes acontece muito mais). Mas não têm tendência depressiva, que se há de fazer? Ser feliz (à falta de melhor palavra) não é uma coisa que se compra, raramente é uma coisa que se torna e cada vez mais penso que é uma coisa que, intrinsecamente, se é por persona, um misto de índices hormonais com caraterísticas de personalidade. Logo, enquanto a alguns lhes cai o mundo em cima mas eles continuam a sorrir porque veem uns raios de sol por entre as frestas dos escombros, outros choram rios e tentam cortar os pulsos ante a suposta antevisão da possível ameaça da queda de um floco.

O que tenho reparado é que na nossa sociedade, nomeadamente em Portugal, há alguma desconfiança relativamente aos “felizes por natureza” (ainda que não por circunstância). A tendência é levantar a sobrancelha e começar a murmurar porque raio andará aquele caramelo tão bem disposto… certamente só pode andar feliz porque deve andar a lixar alguém! Parece ser a única – tristemente válida – razão para se ficar contente por cá. Note-se como estes valores são deturpados e, eles sim, deprimentes. Para além disso, as pessoas confundem contentamento (um efeito de satisfação pela obtenção de algo) com felicidade (que é um estado de espírito per se) mas nem falemos nisso, já que, só por si, dava um livro e parece ser a causa de muitos dramas.

Por outro lado, não há paciência para aquelas pessoas que estão sempre, mas sempre bem dispostas e que nos saúdam com um sorriso enorme, lambuzando-nos de beijos, e querendo saber de toda a nossa vida. Haja respeito pelo espaço de cada um. Tanto interesse vindo de pessoas que não nos conhece assim tão bem cheira a mexeriquice só que muito bem enfeitada de saliva. Calma. Ninguém pode estar tão continua e escandalosamente bem disposto a não ser que tome alguma coisa. A felicidade genuína é recatada e não exige manifestações ruidosas.

As pessoas dizem que o dinheiro não traz felicidade. Mas a verdade é que o amor, a sabedoria, etc, também não. Aliás, como todos sabem, no amor sofre-se bastante (a par de muito se ter prazer). Acresce que ninguém ama sozinho e tudo o que na vida se divide com outra pessoa passa automaticamente a não depender do nosso controlo. Logo, a felicidade não pode depender de nada disso. Já para não falarmos do raro que é o Amor (há milhares de coisas a que se anda a chamar isso, mas não são isso) e se as pessoas felizes dependessem do Amor para serem felizes, muitas não chegariam lá nunca. Ainda bem que a felicidade não depende do Amor. Nem de ninguém. Da sabedoria, menos ainda porque quanto mais se sabe, mais se pensa. Ora, todos os profundos pensadores pecam pela análise demasiada; nunca o ser mais inteligente foi, necessariamente, o mais feliz.


Ser feliz, no entanto, não é uma escolha – como agora se diz. É uma característica bio-caracteriológica. Não significa deixar de sofrer. Não é contagioso (embora a alegria o seja). É mal interpretado. É uma sorte. E é mesmo bom.