Deixam-no estar à porta da igreja
(só à porta, não dentro) e ele lá está com um saco plástico rebentado. Hoje
estava a chorar disfarçadamente e diz-me: “Menina, ajude-me com alguma coisa
para comer.” Remexo na mala à procura de moedas e, entretanto, passa uma
senhora que resmunga: “Não querem trabalhar, é mais fácil pedir” E o velho,
desculpando-se, diz-me: “Mas quem é que me dava trabalho, com esta idade e este
aspeto? A menina acha que eu tenho gosto em andar na rua? Gosto nenhum! Ainda
esta noite me roubaram as mantas e agora nem tenho com que me cobrir!”
Na sua miséria, descubro que há
misérias mais profundas e degraus de ética entre os que vivem sem casa porque
bem percebo a repulsa que sente por outro mendigo ter sido capaz de lhe roubar
as mantas.
“Mas o senhor dorme onde?”
pergunto eu, que já desisti de procurar uma moeda – aliás um hábito bem
mesquinho frente a quem não tem nada e nos vê passar de carteira na mão, tendo
em conta que aquilo que se pode comprar com uma moeda (mesmo de dois euros) não
vai além de uma sanduíche. “Durmo aqui” diz ele, e acrescenta que não é o único.
“E porque é que não vai dormir para um abrigo?” aconselho eu, achando (como todos)
que estou cheia de ideias luminosas para resolver – nem que seja
temporariamente – a situação, e que essas brilhantes soluções nunca ocorreram a
quem sofre o problema na pele.
“Há 3 anos que estou inscrito
para conseguir lugar num abrigo, menina. Ficaram de me chamar quando tivessem
vaga. A vaga nunca aparece. Faz ideia da quantidade de gente que dorme na rua
nesta cidade? São tantos. Eu espero há 3 anos; outros esperam há muito mais. As
pessoas dizem que gostamos da vida na rua. Não sabem do que estão a falar… a
gente quer é sair daqui. Soubessem as pessoas o que isto é: o Inverno sem
telhas, um frio que mata gente. A chuva molha e uma pessoa não seca, dias
seguidos. O mau tempo é tão mau como a fome.”
Há cinco dias que chove em
Lisboa. Hoje estão 3 graus. É muito claro para mim que o homem tem vestida toda
a roupa que tem. É difícil dizer de que cor já foi esta roupa, talvez castanha,
talvez cinzenta, o gorro está-lhe pequeno, as botas gritam por substituição e
obrigam-no a andar de forma estranha. É curioso que, contrariamente à
esmagadora maioria dos sem-abrigo, ele não cheire mal, um resto de orgulho humano
que procura preservar a todo o custo.
“Mas o senhor não come com a
ajuda da carrinha?” pergunto eu, que vejo a carrinha de apoio alimentar aos sem-abrigo
passar a dar-lhes jantar à noite. É certo que o jantar não lhes salva a vida
nem lhes restitui a humanidade mas é uma iniciativa que dá algum calor. “Como.
A carrinha passa por aqui às 10 e meia da noite” responde ele, como um relógio.
Penso para mim que é tarde, mas a carrinha vai a outros lugares primeiro e a
outros ainda depois. E o velho, sempre de voz suave, mas numa pequena revolta diz-me:
“Veja bem, se todo o homem comesse apenas às dez e meia da noite… É muito
difícil aguentar…” E será, de certeza, já que bem perto estamos das
pastelarias, algumas bem refinadas (“Lisboa é a capital do pastel”), que
libertam o aroma a bolos e café. “Eu tenho de ir aos restos dos pratos e aos
caixotes procurar comida! E custa-me quando só encontro espinhas! Mas também as
como!” revela ele, com nojo mas sem perder a dignidade.
Enfim, dou-lhe dinheiro. Mas
sinto-me impotente para resolver o que quer que seja. Afinal, que faço eu de
realmente importante? Nada. A quem me dirijo para resolver isto? Não sei. Acresce
que, por experiência, já percebi que as pessoas com melhor status de vida são as que menos ajudam os mais desfavorecidos. Mas
o velho agradece-me efusivamente e diz-me, como num velho presságio da
Antiguidade: “Não se vai arrepender de ter ajudado este velho. Eu hoje acordei
e pensei que me queria matar, sabe? Não queria ver outras manhãs. Mas agora vou
andando… em frente. E ainda a hei de voltar a ver. Noutro dia.”