Estava eu numa livraria, um pouco afastada do meu filho,
quando um tipo qualquer, distraído a ler, tropeçou e caíu em cima dele. A pouca
distância, vi esta cena e qual não é o meu espanto quando o tipo se levanta,
nada diz à criança e continua a ler como se nada fosse. Dirigi-me ao lugar e
ajudei o miúdo a levantar-se. É só quando me vê que o tipo se aflige e me diz
(a mim!): “Peço muita desculpa. Espero que não se tenha magoado.” Ao que eu
retorqui: “Não estou nada magoada. O senhor não caíu em cima de mim. Tem
consciência que é à criança que tem de pedir desculpa e não a mim?” Ele
olhou-me como se eu fosse um E.T. e continuou sem dizer nada ao miúdo; nem tão
pouco o olhou.
Posso acrescentar muitos mais exemplos deste tipo de atitudes
socioculturais. Na padaria, por exemplo, há uma miudinha de uns 8 anos que vai
comprar pão sozinha. Todo o adulto lhe passa, invariavelmente, à frente na
fila. É como se a criança fosse inexistente. Os próprios empregados, caso não
sejam “os do costume”, são implacáveis no acto de a ignorar. E a pobre lá fica,
em bicos de pés e cara aflita, até alguém fazer a o que é correcto que é
dar-lhe a vez dela – e não raro se acham muito generosos por a considerar uma
pessoa de pleno direito.
No fundo, as pessoas seguem algo intrinsecamente cultural.
Sem irmos mais longe, há um mandamento para honrar e respeitar pai e mãe; não
há nenhum que mande honrar e respeitar os filhos. No entanto, enquanto seres
humanos pensantes, todos concordamos que é bastante difícil, se não mesmo
impossível, e seguramente muito injusto, até desumano, que um ser humano
respeite outro que não o respeita a ele. Como resolvemos, então, este paradoxo?
Talvez a questão esteja nesta simples realidade: as crianças não são vistas
como seres com direitos efectivos na nossa sociedade. Ah, mas as crianças têm
direitos consagrados na Lei, dirão vocês, logo isso não é verdade!
Escandalizem-se à vontade. Uma coisa é a Lei escrita, outra é a Lei aplicada, e
outra ainda são as nossas atitudes quotidianas – no fundo, são elas o arquétipo
que subjaz à aplicação da Lei, não importa quantos artigos estejam escritos.
Claro que agora eu podia derivar sobre o caso da menina de
Faro e sobre a manifestação que se fará este fim-de-semana sobre o assunto, mas
não vou por aí. Falemos de coisas bem mais corriqueiras, sem chegar aos
extremos, para tentar perceber porque é que os extremos acontecem.
O senhor da livraria não pediu desculpa ao miúdo porque não o
considera pessoa no real sentido da palavra. Mas pediu-me a mim, como – passe a
expressão – me pediria desculpa se me tivesse riscado o carro ou tivesse pisado
a minha mala. O grande mal desta sociedade é que os miúdos são vistos como
propriedade dos adultos. E daí advém uma horrível realidade que é considerarem
que os adultos podem fazer-lhes o que bem entenderem. Reparem, por exemplo e
sem me estender noutras considerações, que é ilegal adultos baterem em adultos
– mesmo que estes sejam criminosos ou estejam presos. Mas não é ilegal que
batam em crianças. No entanto, ironicamente, as crianças são os seres mais
vulneráveis e são aqueles que a nossa sociedade proclama defender!
Toda a gente fala da paz no
mundo. Mas talvez ela nunca
possa ser atingida se não se vivenciar paz em casa, primeiro. Que potencial
teria o mundo então!
“À criança deve-se o máximo respeito” alertava Decimus Iunius
Iuvenalis nas suas Sátiras poéticas sobre a decadente sociedade romana do
século I. Teremos avançado muito?