... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, March 11, 2016

Maxima debetur puero reverentia


Estava eu numa livraria, um pouco afastada do meu filho, quando um tipo qualquer, distraído a ler, tropeçou e caíu em cima dele. A pouca distância, vi esta cena e qual não é o meu espanto quando o tipo se levanta, nada diz à criança e continua a ler como se nada fosse. Dirigi-me ao lugar e ajudei o miúdo a levantar-se. É só quando me vê que o tipo se aflige e me diz (a mim!): “Peço muita desculpa. Espero que não se tenha magoado.” Ao que eu retorqui: “Não estou nada magoada. O senhor não caíu em cima de mim. Tem consciência que é à criança que tem de pedir desculpa e não a mim?” Ele olhou-me como se eu fosse um E.T. e continuou sem dizer nada ao miúdo; nem tão pouco o olhou.

Posso acrescentar muitos mais exemplos deste tipo de atitudes socioculturais. Na padaria, por exemplo, há uma miudinha de uns 8 anos que vai comprar pão sozinha. Todo o adulto lhe passa, invariavelmente, à frente na fila. É como se a criança fosse inexistente. Os próprios empregados, caso não sejam “os do costume”, são implacáveis no acto de a ignorar. E a pobre lá fica, em bicos de pés e cara aflita, até alguém fazer a o que é correcto que é dar-lhe a vez dela – e não raro se acham muito generosos por a considerar uma pessoa de pleno direito.

No fundo, as pessoas seguem algo intrinsecamente cultural. Sem irmos mais longe, há um mandamento para honrar e respeitar pai e mãe; não há nenhum que mande honrar e respeitar os filhos. No entanto, enquanto seres humanos pensantes, todos concordamos que é bastante difícil, se não mesmo impossível, e seguramente muito injusto, até desumano, que um ser humano respeite outro que não o respeita a ele. Como resolvemos, então, este paradoxo? Talvez a questão esteja nesta simples realidade: as crianças não são vistas como seres com direitos efectivos na nossa sociedade. Ah, mas as crianças têm direitos consagrados na Lei, dirão vocês, logo isso não é verdade! Escandalizem-se à vontade. Uma coisa é a Lei escrita, outra é a Lei aplicada, e outra ainda são as nossas atitudes quotidianas – no fundo, são elas o arquétipo que subjaz à aplicação da Lei, não importa quantos artigos estejam escritos.

Claro que agora eu podia derivar sobre o caso da menina de Faro e sobre a manifestação que se fará este fim-de-semana sobre o assunto, mas não vou por aí. Falemos de coisas bem mais corriqueiras, sem chegar aos extremos, para tentar perceber porque é que os extremos acontecem.

O senhor da livraria não pediu desculpa ao miúdo porque não o considera pessoa no real sentido da palavra. Mas pediu-me a mim, como – passe a expressão – me pediria desculpa se me tivesse riscado o carro ou tivesse pisado a minha mala. O grande mal desta sociedade é que os miúdos são vistos como propriedade dos adultos. E daí advém uma horrível realidade que é considerarem que os adultos podem fazer-lhes o que bem entenderem. Reparem, por exemplo e sem me estender noutras considerações, que é ilegal adultos baterem em adultos – mesmo que estes sejam criminosos ou estejam presos. Mas não é ilegal que batam em crianças. No entanto, ironicamente, as crianças são os seres mais vulneráveis e são aqueles que a nossa sociedade proclama defender!

Toda a gente fala da paz no mundo. Mas talvez ela nunca possa ser atingida se não se vivenciar paz em casa, primeiro. Que potencial teria o mundo então!


“À criança deve-se o máximo respeito” alertava Decimus Iunius Iuvenalis nas suas Sátiras poéticas sobre a decadente sociedade romana do século I. Teremos avançado muito?