Perdi a carteira. Tinha a certeza de não ter sido roubada,
mas isso de pouco adiantava ao meu incómodo e desgosto de não a voltar a
encontrar. Ao regressar a casa, ao fim do dia, passei, como habitualmente, pela
porta do talho. “Passar por” é a construção frásica correta já que não me
demoro e jamais entro. Passo por ali porque fica a caminho. Eis senão quando o
homem do talho sai de lá de dentro e me diz “Entre, tenho aqui uma coisa sua!”
Entrei, um pouco desconfiada, porque nunca gostei de talhos – carne pendurada,
máquinas a cortar, cabeças de porco em exibição, enfim, odeio tudo aquilo...
Eis senão quando ele tira a minha carteira de trás do balcão e ma entrega, com
ar de satisfação. Fiquei parva (para além de muito contente, claro!) Era mesmo
a minha carteira! Mas como raios a tinha ele encontrado? E, mais, como sabia
que era minha? Pois eu não tenho o meu nome escrito na testa… Ademais, como já
disse, nunca tinha entrado no talho antes deste dia.
- Encontrei a carteira caída no passeio, mesmo aqui em
frente. Abri e olhe, tinha lá uma fotografia deste miúdo pequeno com quem passa
aqui pela mão às vezes. Pensei logo que devia ser sua! Porque eu estou aqui
dentro ao balcão e vejo-a passar todos os dias.
Assim se explica. Vejam bem a improbabilidade. Vê-me passar…
apenas! Nunca sequer estivemos no mesmo local. Mas desse hábito rotineiro de me
ver passar e da sorte de ter encontrado a carteira com uma foto do meu
acompanhante pequeno, deduziu que a carteira era minha e, honestamente, ma entregou.
Foi a primeira vez que falámos.
Há também o caso do rapaz do café. Eu chegava e dizia “uma
torrada e um chá, por favor” e ele fazia-me a torrada à inglesa e o chá
invariavelmente de limão. Mas esta semana, o café contratou uma rapariga nova
que, na sua ânsia de ser prestável, se apressou a atender-me antes que o rapaz
se pudesse acercar. Quando eu fiz o pedido habitual, ela indagou “quer a
torrada com manteiga num ou nos dois lados?” e eu suspirei “só num, se faz
favor… e não muita” e lá disse que o chá era de limão. Enquanto isso, por trás
dela, o rapaz já estava a cortar o pão mal entrei e riu-se para mim, encolhendo
os ombros e piscando o olho. Já me entende.
Não creio que uma cidade seja inteiramente anónima, como
dizem. Entre a vizinha velhota que me bate à porta e pergunta se posso ler a
carta que veio das Finanças porque ela não percebe o que querem dizer, o rapaz
que toca guitarra no restaurante do lado e que depois sobe as escadas como um
gato para dormir na casa da estudante que passa fora os sábados, os imigrantes
chineses - que são bem mais integrados na comunidade do que dizem – e a sua
estrondosa festa de fim de ano chinês, a rapariga da pastelaria que me guarda
um bolo solitário diariamente “porque esgota sempre aquele que gosta, e não
gosta de mais nenhum!”, a curiosa mistura que acontece quando as velhas
tipicamente lisboetas de guarda-chuva (para elas, invariavelmente, “chapéu”)
entram numa das mercearias dos indianos e dizem “Bom dia, Deus os guarde” e
eles replicam “obrigado” sendo eles muçulmanos e sabendo todos, claramente,
cada qual do que falam.
Talvez a cidade seja um pouco como um porto. Não inteiramente
dada, mas certamente não centrada em si. Aberta ao mundo, mas sempre em
movimento. Nessa cadência que flui, vamos encontrando rostos de passagem que se
tornam importantes, mãos que se tocam… não por muito tempo, mas o suficiente
para ajudar a construir uma viagem.