... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, March 25, 2016

A Cidade Anónima


Perdi a carteira. Tinha a certeza de não ter sido roubada, mas isso de pouco adiantava ao meu incómodo e desgosto de não a voltar a encontrar. Ao regressar a casa, ao fim do dia, passei, como habitualmente, pela porta do talho. “Passar por” é a construção frásica correta já que não me demoro e jamais entro. Passo por ali porque fica a caminho. Eis senão quando o homem do talho sai de lá de dentro e me diz “Entre, tenho aqui uma coisa sua!” Entrei, um pouco desconfiada, porque nunca gostei de talhos – carne pendurada, máquinas a cortar, cabeças de porco em exibição, enfim, odeio tudo aquilo... Eis senão quando ele tira a minha carteira de trás do balcão e ma entrega, com ar de satisfação. Fiquei parva (para além de muito contente, claro!) Era mesmo a minha carteira! Mas como raios a tinha ele encontrado? E, mais, como sabia que era minha? Pois eu não tenho o meu nome escrito na testa… Ademais, como já disse, nunca tinha entrado no talho antes deste dia.

- Encontrei a carteira caída no passeio, mesmo aqui em frente. Abri e olhe, tinha lá uma fotografia deste miúdo pequeno com quem passa aqui pela mão às vezes. Pensei logo que devia ser sua! Porque eu estou aqui dentro ao balcão e vejo-a passar todos os dias.

Assim se explica. Vejam bem a improbabilidade. Vê-me passar… apenas! Nunca sequer estivemos no mesmo local. Mas desse hábito rotineiro de me ver passar e da sorte de ter encontrado a carteira com uma foto do meu acompanhante pequeno, deduziu que a carteira era minha e, honestamente, ma entregou. Foi a primeira vez que falámos.

Há também o caso do rapaz do café. Eu chegava e dizia “uma torrada e um chá, por favor” e ele fazia-me a torrada à inglesa e o chá invariavelmente de limão. Mas esta semana, o café contratou uma rapariga nova que, na sua ânsia de ser prestável, se apressou a atender-me antes que o rapaz se pudesse acercar. Quando eu fiz o pedido habitual, ela indagou “quer a torrada com manteiga num ou nos dois lados?” e eu suspirei “só num, se faz favor… e não muita” e lá disse que o chá era de limão. Enquanto isso, por trás dela, o rapaz já estava a cortar o pão mal entrei e riu-se para mim, encolhendo os ombros e piscando o olho. Já me entende.

Não creio que uma cidade seja inteiramente anónima, como dizem. Entre a vizinha velhota que me bate à porta e pergunta se posso ler a carta que veio das Finanças porque ela não percebe o que querem dizer, o rapaz que toca guitarra no restaurante do lado e que depois sobe as escadas como um gato para dormir na casa da estudante que passa fora os sábados, os imigrantes chineses - que são bem mais integrados na comunidade do que dizem – e a sua estrondosa festa de fim de ano chinês, a rapariga da pastelaria que me guarda um bolo solitário diariamente “porque esgota sempre aquele que gosta, e não gosta de mais nenhum!”, a curiosa mistura que acontece quando as velhas tipicamente lisboetas de guarda-chuva (para elas, invariavelmente, “chapéu”) entram numa das mercearias dos indianos e dizem “Bom dia, Deus os guarde” e eles replicam “obrigado” sendo eles muçulmanos e sabendo todos, claramente, cada qual do que falam.


Talvez a cidade seja um pouco como um porto. Não inteiramente dada, mas certamente não centrada em si. Aberta ao mundo, mas sempre em movimento. Nessa cadência que flui, vamos encontrando rostos de passagem que se tornam importantes, mãos que se tocam… não por muito tempo, mas o suficiente para ajudar a construir uma viagem. 

Friday, March 11, 2016

Maxima debetur puero reverentia


Estava eu numa livraria, um pouco afastada do meu filho, quando um tipo qualquer, distraído a ler, tropeçou e caíu em cima dele. A pouca distância, vi esta cena e qual não é o meu espanto quando o tipo se levanta, nada diz à criança e continua a ler como se nada fosse. Dirigi-me ao lugar e ajudei o miúdo a levantar-se. É só quando me vê que o tipo se aflige e me diz (a mim!): “Peço muita desculpa. Espero que não se tenha magoado.” Ao que eu retorqui: “Não estou nada magoada. O senhor não caíu em cima de mim. Tem consciência que é à criança que tem de pedir desculpa e não a mim?” Ele olhou-me como se eu fosse um E.T. e continuou sem dizer nada ao miúdo; nem tão pouco o olhou.

Posso acrescentar muitos mais exemplos deste tipo de atitudes socioculturais. Na padaria, por exemplo, há uma miudinha de uns 8 anos que vai comprar pão sozinha. Todo o adulto lhe passa, invariavelmente, à frente na fila. É como se a criança fosse inexistente. Os próprios empregados, caso não sejam “os do costume”, são implacáveis no acto de a ignorar. E a pobre lá fica, em bicos de pés e cara aflita, até alguém fazer a o que é correcto que é dar-lhe a vez dela – e não raro se acham muito generosos por a considerar uma pessoa de pleno direito.

No fundo, as pessoas seguem algo intrinsecamente cultural. Sem irmos mais longe, há um mandamento para honrar e respeitar pai e mãe; não há nenhum que mande honrar e respeitar os filhos. No entanto, enquanto seres humanos pensantes, todos concordamos que é bastante difícil, se não mesmo impossível, e seguramente muito injusto, até desumano, que um ser humano respeite outro que não o respeita a ele. Como resolvemos, então, este paradoxo? Talvez a questão esteja nesta simples realidade: as crianças não são vistas como seres com direitos efectivos na nossa sociedade. Ah, mas as crianças têm direitos consagrados na Lei, dirão vocês, logo isso não é verdade! Escandalizem-se à vontade. Uma coisa é a Lei escrita, outra é a Lei aplicada, e outra ainda são as nossas atitudes quotidianas – no fundo, são elas o arquétipo que subjaz à aplicação da Lei, não importa quantos artigos estejam escritos.

Claro que agora eu podia derivar sobre o caso da menina de Faro e sobre a manifestação que se fará este fim-de-semana sobre o assunto, mas não vou por aí. Falemos de coisas bem mais corriqueiras, sem chegar aos extremos, para tentar perceber porque é que os extremos acontecem.

O senhor da livraria não pediu desculpa ao miúdo porque não o considera pessoa no real sentido da palavra. Mas pediu-me a mim, como – passe a expressão – me pediria desculpa se me tivesse riscado o carro ou tivesse pisado a minha mala. O grande mal desta sociedade é que os miúdos são vistos como propriedade dos adultos. E daí advém uma horrível realidade que é considerarem que os adultos podem fazer-lhes o que bem entenderem. Reparem, por exemplo e sem me estender noutras considerações, que é ilegal adultos baterem em adultos – mesmo que estes sejam criminosos ou estejam presos. Mas não é ilegal que batam em crianças. No entanto, ironicamente, as crianças são os seres mais vulneráveis e são aqueles que a nossa sociedade proclama defender!

Toda a gente fala da paz no mundo. Mas talvez ela nunca possa ser atingida se não se vivenciar paz em casa, primeiro. Que potencial teria o mundo então!


“À criança deve-se o máximo respeito” alertava Decimus Iunius Iuvenalis nas suas Sátiras poéticas sobre a decadente sociedade romana do século I. Teremos avançado muito?