... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, October 21, 2016

Fábio


Muito discreto e sem estender a mão: "Tem dinheiro para eu comprar um bolo?" Completamente honesto, quase infantil. 

Foi como um portal no tempo. Regressei imediatamente à primeira infância, arrastada por uma mão que me apertava o músculo do coração sem qualquer piedade. Regressei à minha escola, ao Lar das Meninas, a mesma cara envergonhada, o mesmo destino de quem come porque pede dinheiro ou então rouba, os mesmos olhos que seriam tristes se não fossem acomodados, que seriam assustados se não fossem já inertes de tanto apanhar tareia, as mesmas mãos cheias de cicatrizes. Tive a mesma sensação, inteira e avassaladora, de desespero e de mágoa. 

Ele tinha uma expressão de miséria completa - de dinheiro e da outra, miséria de vida desprezada. Misérias disfarçadas por roupas dadas que até estavam em estado decente. Hesitei um momento sobre como o abordar. “Não devias estar na escola?”

Encolheu os ombros e foi até ao bar, onde começou a comer e a beber com muita sofreguidão uma sandes, um sumo e um bolo que lhe venderam mais barato porque era de ontem e estava muito duro. Sem creme, sem açúcar, só massa, nada de doce. Tratavam-no com familiaridade. É o mendigo habitual das 4h30. 

Deixei, como que por acidente, 2 euros em cima da mesa e tudo por comer.
Ele veio atrás de mim:
"Esqueceu-se do seu dinheiro ali. E da comida também. Se já não quiser, eu como."
Empurrei o dinheiro e o sumo para o lado dele e disse "podes ficar". 
Já antes tínhamos olhado longamente um para o outro mas ninguém soube o que dizer. Não nos ensinaram muitas palavras de boa vontade. Ele tinha tido muito tempo para apanhar o dinheiro se quisesse.  Não havia mais clientes e a rapariga do café estava de costas. Mas não o fez.
Cheguei injustamente a recear os olhares... Quando lhe disse "podes ficar", não olhou mais para mim, mas disse "obrigado". Verdadeiramente envergonhado da sua pobreza material. 
Todo este regresso ao passado e às anteriores sensações de sinestesia de espelho causaram-me uma perturbação forte. Voltei a ser eu pequenina.

No dia seguinte, à mesmíssima hora, mas num sítio completamente diferente da cidade, é nítido que o Universo procura dizer-me algo porque o encontro novamente. Está vestido com roupas dadas; ficam-lhe umas grandes e outras pequenas. Conheço o estilo, que já foi o meu. A princípio não o vejo e é ele que me cumprimenta. 
"Menina, tudo bem?" 
E fala-me de uma data de coisas, metade das quais miseravelmente não percebo. Não pede nada, não invoca nada. Mas sou eu, memória apertada a escorrer sangue, alma e coração como que sofrendo a carnificina do que já foi e volta a ser, sensações físicas que me torturam até ao espasmo das mãos que se contorcem, que lhe digo, embora sofra de uma enorme vergonha "O que é que posso fazer por ti?" 

E esta mesma pergunta o faz pensar que sou uma “menina”. Mas sou barro da mesma lama, madeira da mesma árvore. "Da mesma árvore se faz lenha para a lareira e um santo para o altar". Somos os dois lenha de lareira, mas um foi salvo da fogueira para enfeitar um arranjo de outono e o outro olha-a como se de santa se tratasse.  


Friday, October 7, 2016

Rapariga perdida [de si mesma] no metro


A mulher bem vestida entra no metro com uma criança e senta-se no único lugar disponível. E aí está a outra, sentada em frente. Faz tanto calor que a outra não pode evitar trazer um mínimo de roupa. Vêem-se-lhe o pescoço, os braços, todas as veias marcadas pelo (ab)uso de seringas. Até poderia apostar que barriga, tornozelos, e pernas também estarão assim, mas ela veste calças. Tem o cabelo sujo e a cara magoada. Tem feridas no corpo, próprias de quem se coça com escova. Os lábios com cicatrizes estão tão marcados de golpes que lhe deve ser difícil comer. Um olhar parado, de ausência. 

As pessoas olham-na com um misto de curiosidade e de nojo. E aquela rapariga esburacada, cuja palidez de cadáver sobressai num transporte onde quase todos são morenos de um Verão tórrido, tem, de repente, um lampejo de lucidez quando o homem que está ao lado dela a mira mais demoradamente. Senta-se direita e vira-lhe as costas, como se lhe dissesse que também ela tem o direito de o desprezar a ele. 

Nessa altura, o metro pára e na janela vê-se um anúncio que diz "Produto X mata piolhos e lêndeas". A criança da mulher bem vestida pergunta: "O que são lêndeas, mãe?" A mulher hesita e a rapariga esburacada, que despertou da sua letargia, responde primeiro "Lêndeas são os filhotes dos piolhos!" A mulher não esperava que aquele cadáver ambulante falasse e tartamudeia: "Pois... é isso." A criança questiona muito audivelmente (porque as crianças são assim, não conhecem as convenções sociais apropriadas) "Mãe…Quem é esta?"

A rapariga olha-a, interessada, porque depois de ter reparado no olhar de asco do homem quer saber como vai esta mulher responder. Heróinomana será, mas ainda lhe interessa isto, ao menos neste momento. "É uma senhora", diz a mulher. A rapariga sorri (uma senhora!), e diz à criança "Sabes que os piolhos gostam de cabeças limpas? As pessoas pensam que os piolhos só andam em gente suja mas não! Eu morei cinco anos na rua e nunca tive piolhos. Mas quando era criança e andava na escola, morava numa boa casa e tive a cabeça cheia deles!" Dita esta sua sentença - e disse-a muito alto porque era para as pessoas do metro que falava, queria que soubessem um bocado da sua história, a pele toda esburacada como uma renda teria, mas piolhos não e já não morava na rua - olhou para a mulher, esperando concordância. Que havia a outra de dizer? "Na verdade não sei... Suponho que pode acontecer" disse a mulher, aparentando naturalidade. "Pois é mesmo assim" continuou a esburacada, que entretanto se tinha virado para a bem vestida desde que esta a presenteara com o antroponímico "senhora". 

"Agora vou ter de sair do metro" explicou a rapariga, continuando a falar muito alto, e era com tanta raiva como com altivez e orgulho que falava à sua assistência de passageiros (embora só olhasse para a mulher) "porque tenho de ir trabalhar!" rematou. 

Levantou-se e colou-se à porta, porque em pouco tempo estaríamos perto de uma estação, numa zona da cidade famosa por muitos tipos de comércio, inclusivé o da própria carne, que suponho ser o que a rapariga vende - para depois comprar o que a entope. E eis que a criança pergunta à mãe "Onde é que esta senhora trabalha?" A mulher ficou de novo em cheque, sobretudo porque a rapariga a olhava desafiadoramente a ver como se ia safar. Consciente de que a rapariga esperava uma resposta sua tanto como a criança, a mulher disse "Ela pode fazer muitas coisas... Neste sítio, há muitas lojas e cafés... Se calhar, trabalha nalgum!" A rapariga sorria melancolicamente, e não a contradisse. Antes de sair do metro, recuperou o seu ar ausente, que lhe dava muito jeito - já que ia trabalhar e há tarefas das quais convém estar alheado. De facto, a julgar pelo ar dela, a rapariga vivia alheada de toda a sua vida. 

"Espero que não trabalhe nalguma loja horrível. Porque ela não está nada feliz. E não cheira muito bem" disse a criança.  

A mulher bem vestida nada tinha em comum com a rapariga esburacada. No entanto, quando saíu na paragem seguinte, apertando com força a mãozinha da filha na sua, tinha uma ruga sombria na sua expressão sensível que parecia indicar o quanto sabia como era fácil poder ser ela a estar no lugar da outra, caso a roda da fortuna tivesse girado de forma diferente nalgum dos momentos da vida.