A mulher bem vestida entra no metro com uma criança e senta-se no único
lugar disponível. E aí está a outra, sentada em frente. Faz tanto calor que a
outra não pode evitar trazer um mínimo de roupa. Vêem-se-lhe o pescoço, os
braços, todas as veias marcadas pelo (ab)uso de seringas. Até poderia apostar
que barriga, tornozelos, e pernas também estarão assim, mas ela veste calças.
Tem o cabelo sujo e a cara magoada. Tem feridas no corpo, próprias de quem se
coça com escova. Os lábios com cicatrizes estão tão marcados de golpes que lhe
deve ser difícil comer. Um olhar parado, de ausência.
As pessoas olham-na com um misto de curiosidade e de nojo. E aquela
rapariga esburacada, cuja palidez de cadáver sobressai num transporte onde
quase todos são morenos de um Verão tórrido, tem, de repente, um lampejo de
lucidez quando o homem que está ao lado dela a mira mais demoradamente. Senta-se
direita e vira-lhe as costas, como se lhe dissesse que também ela tem o direito
de o desprezar a ele.
Nessa altura, o metro pára e na janela vê-se um anúncio que diz
"Produto X mata piolhos e lêndeas". A criança da mulher bem vestida
pergunta: "O que são lêndeas, mãe?" A mulher hesita e a rapariga
esburacada, que despertou da sua letargia, responde primeiro "Lêndeas são
os filhotes dos piolhos!" A mulher não esperava que aquele cadáver
ambulante falasse e tartamudeia: "Pois... é isso." A criança
questiona muito audivelmente (porque as crianças são assim, não conhecem as
convenções sociais apropriadas) "Mãe…Quem é esta?"
A rapariga olha-a, interessada, porque depois de ter reparado no olhar de asco
do homem quer saber como vai esta mulher responder. Heróinomana será, mas ainda
lhe interessa isto, ao menos neste momento. "É uma senhora", diz a
mulher. A rapariga sorri (uma senhora!), e diz à criança "Sabes que os piolhos
gostam de cabeças limpas? As pessoas pensam que os piolhos só andam em gente
suja mas não! Eu morei cinco anos na rua e nunca tive piolhos. Mas quando era
criança e andava na escola, morava numa boa casa e tive a cabeça cheia
deles!" Dita esta sua sentença - e disse-a muito alto porque era para as
pessoas do metro que falava, queria que soubessem um bocado da sua história, a
pele toda esburacada como uma renda teria, mas piolhos não e já não morava na
rua - olhou para a mulher, esperando concordância. Que havia a outra de dizer?
"Na verdade não sei... Suponho que pode acontecer" disse a mulher,
aparentando naturalidade. "Pois é mesmo assim" continuou a esburacada,
que entretanto se tinha virado para a bem vestida desde que esta a presenteara com o antroponímico
"senhora".
"Agora vou ter de sair do metro" explicou a rapariga, continuando
a falar muito alto, e era com tanta raiva como com altivez e orgulho que falava
à sua assistência de passageiros (embora só olhasse para a mulher) "porque
tenho de ir trabalhar!" rematou.
Levantou-se e colou-se à porta, porque em pouco tempo estaríamos perto de
uma estação, numa zona da cidade famosa por muitos tipos de comércio, inclusivé
o da própria carne, que suponho ser o que a rapariga vende - para depois
comprar o que a entope. E eis que a criança pergunta à mãe "Onde é que esta
senhora trabalha?" A mulher ficou de novo em cheque, sobretudo porque a
rapariga a olhava desafiadoramente a ver como se ia safar. Consciente de que a
rapariga esperava uma resposta sua tanto como a criança, a mulher disse
"Ela pode fazer muitas coisas... Neste sítio, há muitas lojas e cafés...
Se calhar, trabalha nalgum!" A rapariga sorria melancolicamente, e não a contradisse.
Antes de sair do metro, recuperou o seu ar ausente, que lhe dava muito jeito -
já que ia trabalhar e há tarefas das quais convém estar alheado. De facto, a
julgar pelo ar dela, a rapariga vivia alheada de toda a sua vida.
"Espero que não trabalhe nalguma loja horrível. Porque ela não está
nada feliz. E não cheira muito bem" disse a criança.
A mulher bem vestida nada tinha em comum com a rapariga esburacada. No
entanto, quando saíu na paragem seguinte, apertando com força a mãozinha da
filha na sua, tinha uma ruga sombria na sua expressão sensível que parecia
indicar o quanto sabia como era fácil poder ser ela a estar no lugar da outra,
caso a roda da fortuna tivesse girado de forma diferente nalgum dos momentos da
vida.