Muito discreto e sem estender
a mão: "Tem dinheiro para eu comprar um bolo?" Completamente honesto,
quase infantil.
Foi como um portal no tempo.
Regressei imediatamente à primeira infância, arrastada por uma mão que me
apertava o músculo do coração sem qualquer piedade. Regressei à minha escola,
ao Lar das Meninas, a mesma cara envergonhada, o mesmo destino de quem come
porque pede dinheiro ou então rouba, os mesmos olhos que seriam tristes se não
fossem acomodados, que seriam assustados se não fossem já inertes de tanto
apanhar tareia, as mesmas mãos cheias de cicatrizes. Tive a mesma
sensação, inteira e avassaladora, de desespero e de mágoa.
Ele tinha uma expressão de
miséria completa - de dinheiro e da outra, miséria de vida desprezada. Misérias
disfarçadas por roupas dadas que até estavam em estado decente. Hesitei um
momento sobre como o abordar. “Não devias estar na escola?”
Encolheu os ombros e foi até
ao bar, onde começou a comer e a beber com muita sofreguidão uma sandes, um
sumo e um bolo que lhe venderam mais barato porque era de ontem e estava muito
duro. Sem creme, sem açúcar, só massa, nada de doce. Tratavam-no com
familiaridade. É o mendigo habitual das 4h30.
Deixei, como que por acidente,
2 euros em cima da mesa e tudo por comer.
Ele veio atrás de mim:
"Esqueceu-se do seu
dinheiro ali. E da comida também. Se já não quiser, eu como."
Empurrei o dinheiro e o sumo
para o lado dele e disse "podes ficar".
Já antes tínhamos olhado
longamente um para o outro mas ninguém soube o que dizer. Não nos ensinaram
muitas palavras de boa vontade. Ele tinha tido muito tempo para apanhar o
dinheiro se quisesse. Não havia mais clientes e a rapariga do café estava
de costas. Mas não o fez.
Cheguei injustamente a recear
os olhares... Quando lhe disse "podes ficar", não olhou mais para
mim, mas disse "obrigado". Verdadeiramente envergonhado da sua
pobreza material.
Todo este regresso ao passado
e às anteriores sensações de sinestesia de espelho causaram-me uma perturbação forte.
Voltei a ser eu pequenina.
No dia seguinte, à mesmíssima
hora, mas num sítio completamente diferente da cidade, é nítido que o Universo
procura dizer-me algo porque o encontro novamente. Está vestido com roupas dadas;
ficam-lhe umas grandes e outras pequenas. Conheço o estilo, que já foi o meu. A
princípio não o vejo e é ele que me cumprimenta.
"Menina, tudo
bem?"
E fala-me de uma data de
coisas, metade das quais miseravelmente não percebo. Não pede nada, não invoca
nada. Mas sou eu, memória apertada a escorrer sangue, alma e coração como que
sofrendo a carnificina do que já foi e volta a ser, sensações físicas que me
torturam até ao espasmo das mãos que se contorcem, que lhe digo, embora sofra
de uma enorme vergonha "O que é que posso fazer por ti?"
E esta mesma pergunta o faz pensar que sou uma
“menina”. Mas sou barro da mesma lama, madeira da mesma árvore. "Da mesma
árvore se faz lenha para a lareira e um santo para o altar". Somos os dois
lenha de lareira, mas um foi salvo da fogueira para enfeitar um arranjo de
outono e o outro olha-a como se de santa se tratasse.