... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, May 24, 2018

A aldeia global versus o pé da Luisinha



“A mesma dura lei física rege a acústica e a sensibilidade” dizia Eça de Queiroz, para expressar que quanto mais distantes as coisas se encontram de nós no espaço menos nos impressionam.

A este propósito, Eça escreveu um delicioso texto que bem o demonstra, em que numa sala portuguesa um grupo de amigos, ao serão, ouve distraidamente uma dama que folheia o jornal e vai lendo alto as notícias. As notícias são desastres que a loira e serena narradora desfia com mansidão.

 Na ilha de Java, um terramoto matara duas mil pessoas – o que a ninguém da sala interessou, mau grado o supremo infortúnio que caíra sob esse obscuro formigueiro de gente indonésia. Continua a narradora loira, desta vez falando de um rio que transbordara na Hungria, destruindo vilas e homens. Aqui, já alguém reage, bocejando com preguiça “Que desgraça!”. De facto, da remota e vaga Java (sabe-se lá onde seja ao certo) para a europeia Hungria, a diferença faz-se sentir. A delicada senhora prossegue, e a desgraça aproxima-se no mapa: na Bélgica, tropas tinham atacado uma greve operária, matando crianças e mulheres. Já um maior número de interlocutores se anima: “Que horror, pobre gente!”  Continua a descrição: na fronteira do sul da França, um comboio descarrilara, três mortos, alguns feridos. Desta vez, a comoção é sentida. Um comboio, onde muito possivelmente viajavam portugueses! Quem sabe se se destinava mesmo a Portugal! O lamento, geral ainda que breve, partiu de todas as poltronas onde os convivas gozavam a sua segurança.

É aqui que a delicada senhora vira a página e se emociona, dolorida, ao dar de caras com a notícia de uma desgraça local: “A Luisinha Carneiro da Bela-Vista… esta manhã… desmanchou um pé!” Toda a sala vibra em desgosto e comoção. Eça descreve, com muita verve, “a sombra ligeira e remota” dos “dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes, guerras… tudo desaparecera. Mas o pé da Luisinha esmagava os nossos corações! Pudera! Todos a conhecíamos!”

Passados dois séculos sobre este texto, o que mudou? A aldeia global trazida pelos media, o conhecimento à distância de um click proporcionado pela internet, que efeito tiveram no nosso afecto? É verdade que, mesmo quem nunca viajou, pode hoje sentir-se mais próximo de Java e da Hungria e talvez já lá tenha “estado” de certo modo, vendo fotos e filmes. Mas dificilmente isso fará com que tenha maior comiseração por esse povo, cuja distância sentimental continua a ser enorme, sem um conhecimento quotidiano de trocas e vivências. Foi também Eça quem falou sobre a “abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração”, exatamente para referir que “a distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de angústia.”

A sabedoria popular diz “olhos que não vêem, coração que não sente”. Este adágio explica o porquê de não sentir com arrepio, não entender com empatia povos distantes. As pessoas e os acontecimentos interessam-nos na medida em que nos são próximos. Assim, a guerra na Síria ou o drama dos milhões de refugiados interessam-nos menos do que o pé torcido de alguma Luisinha amiga durante a procissão do Senhor Santo Cristo.


Friday, May 11, 2018

Síndroma de Resignação



Não sei o que tem a Suécia, mas há síndromas peculiares que por lá nascem e se tornam famosos no mundo inteiro (vide o de Estocolmo). Este é mais um deles.

Os primeiros casos apareceram nos anos 90, mas só na década seguinte se começou a dar importância médica às centenas de casos que afetam apenas crianças e adolescentes de famílias de refugiados ameaçados de deportação. Na primeira década de 2000, havia tantos casos que os refugiados foram acusados de estarem a drogar os filhos bem como as crianças e adolescentes afetados foram sistematicamente acusados de estar a fingir. Mas nenhuma destas teses foi provada. Pelo contrário. Testando os pacientes com toda a sorte de estímulos, os observadores não conseguiram nunca obter deles nenhuma reação e renderam-se às evidências: os pacientes estavam resignados a não viver, como se tivessem escolhido um coma voluntário.

O que é o Síndroma da Resignação? É uma espécie de apatia que vai evoluindo até à catatonia absoluta, de tal forma que a criança/adolescente afetado passa a ter de ser alimentado por tubo. Não fala, não abre os olhos, não demonstra sede, fome ou outra necessidade básica.  Não responde à dor, ao toque, ou à luz, perde os reflexos. Vive como um comatoso, completamente desligado do mundo, não fosse o cuidado da família que o mantém em casa.

Todos os afetados mantêm um pulso normal, condições cerebrais e cardíacas normais e eram crianças/jovens fisicamente saudáveis antes do episódio. Em comum, têm todos também o facto de terem passado por situações muito violentas e terem vivido em ambientes extremamente inseguros, situações das quais ambicionavam poder escapar através do pedido de asilo das famílias na Suécia. A todas estas famílias o pedido foi negado, o que só ocorre um par de anos após o pedido ser feito, e é depois desta negação que o paciente começa a sofrer do Síndroma, rapidamente evolutivo.

Não é preciso ser génio para perceber a ligação entre a expectativa gorada de uma vida nova, livre do trauma, e o início desta misteriosa “morte em vida” que só afeta juvenis. De facto, há casos reportados de jovens cujas famílias conseguiram ganhar o caso de asilo posteriormente, através de apelação, e assim que estes comatosos souberam que não iriam voltar à vida anterior mas iriam, sim, ficar na Suécia, o Síndroma entrou progressivamente em remissão e a recuperação foi completa!

Os céticos dirão já que os miúdos estão a tentar compadecer o próximo. Mas os médicos afirmam o contrário. Quem conseguiria ficar sem reação à dor, sobretudo uma criança? E qual a criança consegue ficar anos sem se mexer e sem abrir os olhos?

Os estudos são ainda poucos sobre este Síndroma da Resignação, mas diz-se que não é novidade no mundo. Já nos campos nazis havia algo semelhante e entre os refugiados no Reino Unido há algo com os mesmos sintomas a que os ingleses chamam Síndroma de Recusa Generalizada. Pessoalmente, porque acredito que estes meninos não estão esquecidos de viver, mas sim a lutar pela vida com as armas que possuem, prefiro a designação inglesa.