“A mesma dura lei física rege a
acústica e a sensibilidade” dizia Eça de Queiroz, para expressar que quanto
mais distantes as coisas se encontram de nós no espaço menos nos impressionam.
A este propósito, Eça escreveu um
delicioso texto que bem o demonstra, em que numa sala portuguesa um grupo de
amigos, ao serão, ouve distraidamente uma dama que folheia o jornal e vai lendo
alto as notícias. As notícias são desastres que a loira e serena narradora desfia
com mansidão.
Na ilha de Java, um terramoto matara duas mil pessoas – o que a
ninguém da sala interessou, mau grado o supremo infortúnio que caíra sob esse
obscuro formigueiro de gente indonésia. Continua a narradora loira, desta vez
falando de um rio que transbordara na Hungria, destruindo vilas e homens. Aqui,
já alguém reage, bocejando com preguiça “Que desgraça!”. De facto, da remota e
vaga Java (sabe-se lá onde seja ao certo) para a europeia Hungria, a diferença
faz-se sentir. A delicada senhora prossegue, e a desgraça aproxima-se no mapa:
na Bélgica, tropas tinham atacado uma greve operária, matando crianças e
mulheres. Já um maior número de interlocutores se anima: “Que horror, pobre
gente!” Continua a descrição: na
fronteira do sul da França, um comboio descarrilara, três mortos, alguns
feridos. Desta vez, a comoção é sentida. Um comboio, onde muito possivelmente
viajavam portugueses! Quem sabe se se destinava mesmo a Portugal! O lamento,
geral ainda que breve, partiu de todas as poltronas onde os convivas gozavam a
sua segurança.
É aqui que a delicada senhora
vira a página e se emociona, dolorida, ao dar de caras com a notícia de uma
desgraça local: “A Luisinha Carneiro da Bela-Vista… esta manhã… desmanchou um
pé!” Toda a sala vibra em desgosto e comoção. Eça descreve, com muita verve, “a
sombra ligeira e remota” dos “dois mil javaneses sepultados no terramoto, a
Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte,
fomes, pestes, guerras… tudo desaparecera. Mas o pé da Luisinha esmagava os
nossos corações! Pudera! Todos a conhecíamos!”
Passados dois séculos sobre este
texto, o que mudou? A aldeia global trazida pelos media, o conhecimento à distância de um click proporcionado pela internet, que efeito tiveram no nosso
afecto? É verdade que, mesmo quem nunca viajou, pode hoje sentir-se mais próximo
de Java e da Hungria e talvez já lá tenha “estado” de certo modo, vendo fotos e
filmes. Mas dificilmente isso fará com que tenha maior comiseração por esse
povo, cuja distância sentimental continua a ser enorme, sem um conhecimento
quotidiano de trocas e vivências. Foi também Eça quem falou sobre a “abominável
influência da distância sobre o nosso imperfeito coração”, exatamente para
referir que “a distância e o tempo fazem das mais grossas tragédias ligeiras
notícias – onde nenhum espírito são, bem equilibrado, encontra motivo de
angústia.”
A sabedoria popular diz “olhos
que não vêem, coração que não sente”. Este adágio explica o porquê de não
sentir com arrepio, não entender com empatia povos distantes. As pessoas e os
acontecimentos interessam-nos na medida em que nos são próximos. Assim, a guerra
na Síria ou o drama dos milhões de refugiados interessam-nos menos do que o pé
torcido de alguma Luisinha amiga durante a procissão do Senhor Santo Cristo.