... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, July 20, 2018

Uma Escrita Assim Mais Masculina



Durante alguns meses, tive de combinar uma conferência com colegas com os quais só me correspondi por mail. Visto que o endereço da universidade não contempla o primeiro nome e a nossa assinatura formal tão pouco, o contacto realizou-se sempre nestes termos. Ao fim de vários mails, o meu interlocutor falou-me do “dia livre” e sugeriu que todos dessemos um passeio familiar, acompanhados das nossas mulheres e filhos. Respondi que era uma boa ideia, mas sendo eu heterossexual, restava-me levar o meu marido e filho. Acrescentei um sinal de “smile”. Desfazendo-se em desculpas, ele respondeu que jamais tinha pensado estar a falar com uma mulher, dado que a minha forma de escrever era “tão lógica, tão direta, tão pragmática”.

Claro que estamos a falar de missivas de trabalho, não de escrita ficcional (assim espero, embora haja casos que roçam o fantasioso, mas não vamos por aí). Seria inusitado se eu escrevesse de forma barroca, gótica, maneirista, simbolista ou romântica. Ainda assim, a situação coloca-me o velho dilema, tão discutido, da escrita feminina versus a escrita masculina.

Pessoalmente, não sou a favor da distinção.  Certa vez, assisti a uma palestra de um crítico (por respeito, não digo quem) em que ele defendia que certos géneros literários eram exclusivamente bem escritos no feminino e outros no masculino. Citou o Realismo Mágico sul americano de Isabel Allende e a Fantasia Contemporânea da autora de Harry Potter, J. K. Rowling, como géneros femininos. Mas também podia ter citado Gabriel Garcia Márquez para o primeiro caso e Tolkien e o seu Senhor dos Anéis para o segundo, o que destrói a sua teoria. Também citou o género criminal de Conan Doyle e o seu Sherlock Holmes como género masculino. Então e Agatha Christie?

Existe, claramente, um discurso masculino e um discurso feminino quando se escreve. Mas estes discursos podem ser assumidos por autores de diferentes géneros desde que sejam autores competentes para o fazer. Se “o poeta é um fingidor” então conseguirá fingir o que não é… mas para isso tem de ser exímio no que faz, o que não estará ao alcance de todos.

Outra questão prende-se com a experiência, se formos a favor da teoria que tudo aquilo sobre o que se escreve é previamente determinado (nem que seja um pouco) por experiências vividas de onde se retira um magma essencial que moldará a ficção posterior. Determinados assuntos são exclusivos da experiência feminina, como sejam a menstruação, a gravidez, o parto, o aleitamento, a menopausa, eventuais abortos e uma descarga de hormonas que os ginecologistas explicam bem. No entanto, não basta ser mulher para fazer literatura da experiência de o ser…

Concordo, sem sombra de dúvida, com uma identidade feminina diferente da masculina. Mas não com uma escrita feminina diferente da masculina. Criar divisões na Arte é menosprezá-la. A Literatura não precisa de género sexual para se definir; precisa de se definir em boa ou má. Se assim não for, como continuaremos a dizer que a Literatura que mais nos toca trata de experiências universais que dizem respeito a toda a condição humana?

Friday, July 6, 2018

Dar a Outra Face



Ultimamente, há uma ideia muito popularizada pela Psicologia de cordel (aquela que não se apoia em cientificidade, mas vende livros de autoajuda) e pelos Tribunais (basta vermos as decisões que vêm a público): é a ideia, profundamente cristã, de que a vítima deve perdoar. Por maior que tenha sido o crime, opina a corrente atual que a vítima não encontrará descanso se o perpetrador for culpado; pelo contrário, a paz advém do perdão.

Assim, todo aquele que diz que não perdoa é imediatamente considerado um indivíduo pouco avançado em termos espirituais, nestes tempos em que o Ocidente vê a espiritualidade como escada para o Nirvana – outra coisa da qual pouco percebe, porque os Orientais não concebem o perdão jamais, apenas se desligam a tal ponto que o Outro deixa de lhes interessar (ideia muito mais genial!).

A propósito, a BBC noticiou ontem um curioso episódio de uma mulher, Nancy Shore, que demonstra o ridículo destes perdões modernos. Nancy foi baleada na cabeça por um atirador contratado, negócio bem feito, em que este fingira ser um assaltante. O “assalto” vinha a ser planeado há três anos pelo marido de Nancy, que, vendo o tiro falhado (a bala foi alojar-se no pulmão) ainda fez o papel de ir acompanhar Nancy no Hospital, pesarosa e diariamente. A Polícia apanhou o atirador e chegou ao marido, descobrindo o enredo. Mas a parte interessante é a reação de Nancy.

“Tínhamos um casamento maravilhoso. O meu marido era muito gentil, gostava de mim. Muito dedicado aos meus filhos. Adora crianças.” Logo aqui, começo a suspeitar que a sra Shore sofre de negação da realidade. “Maravilhoso” será, no mínimo, hipérbole... Quanto a ser “gentil”, etc, bem sei que a bitola varia para todos nós, mas parecem-me qualidades incompatíveis com um assassinato planeado friamente ao longo de anos, com a hipocrisia de ser chorado copiosamente quando viu a tentativa lograda.

“Quando ele soube [o que acontecera], começou a chorar, descontrolado, ficou fora de si, como a minha filha o descreveu. Tentou fazer o que podia para me salvar.” A sra Shore não interiorizou que estas lágrimas do marido teriam sido perfeitamente evitáveis se… o próprio marido não a tivesse mandado matar! Mas o melhor está para vir, no modo benevolentemente patético como a sra Shore o desculpa: “Ele confessou, chorando muito [que o tinha feito] porque estava com outra mulher. E ele sabia que eu jamais me divorciaria dele! Claro que não lhe restava outra hipótese senão matar-me!”

Nancy Shore não tem dúvidas: “Ainda o amo. Não romanticamente, mas não se pode deixar de amar o pai dos nossos filhos. […] Ele sempre foi bom marido e pai até deixar de o ser.” Acrescenta Nancy, para rematar: “Tive de me divorciar porque ele foi condenado. Mas se ele sair da cadeia, poderemos voltar a casar. Eu já o perdoei. Se não o perdoasse, viveria amargurada.”

Vítimas assim são o sonho do Sistema atual. O Sistema que manda dar a outra face; que oferece “thoughts and prayers” mas não mexe um dedo para resolver situações. O problema é que pessoas desta qualidade não têm um pingo de auto preservação e instinto de sobrevivência e colocam em perigo também os outros, já que um predador raramente ataca uma presa só.