Ultimamente, há uma ideia muito
popularizada pela Psicologia de cordel (aquela que não se apoia em
cientificidade, mas vende livros de autoajuda) e pelos Tribunais (basta vermos
as decisões que vêm a público): é a ideia, profundamente cristã, de que a
vítima deve perdoar. Por maior que tenha sido o crime, opina a corrente atual
que a vítima não encontrará descanso se o perpetrador for culpado; pelo
contrário, a paz advém do perdão.
Assim, todo aquele que diz que
não perdoa é imediatamente considerado um indivíduo pouco avançado em termos
espirituais, nestes tempos em que o Ocidente vê a espiritualidade como escada
para o Nirvana – outra coisa da qual pouco percebe, porque os Orientais não
concebem o perdão jamais, apenas se desligam a tal ponto que o Outro deixa de
lhes interessar (ideia muito mais genial!).
A propósito, a BBC noticiou ontem
um curioso episódio de uma mulher, Nancy Shore, que demonstra o ridículo destes
perdões modernos. Nancy foi baleada na cabeça por um atirador contratado,
negócio bem feito, em que este fingira ser um assaltante. O “assalto” vinha a
ser planeado há três anos pelo marido de Nancy, que, vendo o tiro falhado (a
bala foi alojar-se no pulmão) ainda fez o papel de ir acompanhar Nancy no
Hospital, pesarosa e diariamente. A Polícia apanhou o atirador e chegou ao
marido, descobrindo o enredo. Mas a parte interessante é a reação de Nancy.
“Tínhamos um casamento
maravilhoso. O meu marido era muito gentil, gostava de mim. Muito dedicado aos
meus filhos. Adora crianças.” Logo aqui, começo a suspeitar que a sra Shore
sofre de negação da realidade. “Maravilhoso” será, no mínimo, hipérbole...
Quanto a ser “gentil”, etc, bem sei que a bitola varia para todos nós, mas parecem-me
qualidades incompatíveis com um assassinato planeado friamente ao longo de
anos, com a hipocrisia de ser chorado copiosamente quando viu a tentativa
lograda.
“Quando ele soube [o que
acontecera], começou a chorar, descontrolado, ficou fora de si, como a minha
filha o descreveu. Tentou fazer o que podia para me salvar.” A sra Shore não
interiorizou que estas lágrimas do marido teriam sido perfeitamente evitáveis
se… o próprio marido não a tivesse mandado matar! Mas o melhor está para vir,
no modo benevolentemente patético como a sra Shore o desculpa: “Ele confessou,
chorando muito [que o tinha feito] porque estava com outra mulher. E ele sabia
que eu jamais me divorciaria dele! Claro que não lhe restava outra hipótese
senão matar-me!”
Nancy Shore não tem dúvidas:
“Ainda o amo. Não romanticamente, mas não se pode deixar de amar o pai dos
nossos filhos. […] Ele sempre foi bom marido e pai até deixar de o ser.”
Acrescenta Nancy, para rematar: “Tive de me divorciar porque ele foi condenado.
Mas se ele sair da cadeia, poderemos voltar a casar. Eu já o perdoei. Se não o
perdoasse, viveria amargurada.”
Vítimas assim são o sonho do
Sistema atual. O Sistema que manda dar a outra face; que oferece “thoughts and
prayers” mas não mexe um dedo para resolver situações. O problema é que pessoas
desta qualidade não têm um pingo de auto preservação e instinto de
sobrevivência e colocam em perigo também os outros, já que um predador
raramente ataca uma presa só.