... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, July 6, 2018

Dar a Outra Face



Ultimamente, há uma ideia muito popularizada pela Psicologia de cordel (aquela que não se apoia em cientificidade, mas vende livros de autoajuda) e pelos Tribunais (basta vermos as decisões que vêm a público): é a ideia, profundamente cristã, de que a vítima deve perdoar. Por maior que tenha sido o crime, opina a corrente atual que a vítima não encontrará descanso se o perpetrador for culpado; pelo contrário, a paz advém do perdão.

Assim, todo aquele que diz que não perdoa é imediatamente considerado um indivíduo pouco avançado em termos espirituais, nestes tempos em que o Ocidente vê a espiritualidade como escada para o Nirvana – outra coisa da qual pouco percebe, porque os Orientais não concebem o perdão jamais, apenas se desligam a tal ponto que o Outro deixa de lhes interessar (ideia muito mais genial!).

A propósito, a BBC noticiou ontem um curioso episódio de uma mulher, Nancy Shore, que demonstra o ridículo destes perdões modernos. Nancy foi baleada na cabeça por um atirador contratado, negócio bem feito, em que este fingira ser um assaltante. O “assalto” vinha a ser planeado há três anos pelo marido de Nancy, que, vendo o tiro falhado (a bala foi alojar-se no pulmão) ainda fez o papel de ir acompanhar Nancy no Hospital, pesarosa e diariamente. A Polícia apanhou o atirador e chegou ao marido, descobrindo o enredo. Mas a parte interessante é a reação de Nancy.

“Tínhamos um casamento maravilhoso. O meu marido era muito gentil, gostava de mim. Muito dedicado aos meus filhos. Adora crianças.” Logo aqui, começo a suspeitar que a sra Shore sofre de negação da realidade. “Maravilhoso” será, no mínimo, hipérbole... Quanto a ser “gentil”, etc, bem sei que a bitola varia para todos nós, mas parecem-me qualidades incompatíveis com um assassinato planeado friamente ao longo de anos, com a hipocrisia de ser chorado copiosamente quando viu a tentativa lograda.

“Quando ele soube [o que acontecera], começou a chorar, descontrolado, ficou fora de si, como a minha filha o descreveu. Tentou fazer o que podia para me salvar.” A sra Shore não interiorizou que estas lágrimas do marido teriam sido perfeitamente evitáveis se… o próprio marido não a tivesse mandado matar! Mas o melhor está para vir, no modo benevolentemente patético como a sra Shore o desculpa: “Ele confessou, chorando muito [que o tinha feito] porque estava com outra mulher. E ele sabia que eu jamais me divorciaria dele! Claro que não lhe restava outra hipótese senão matar-me!”

Nancy Shore não tem dúvidas: “Ainda o amo. Não romanticamente, mas não se pode deixar de amar o pai dos nossos filhos. […] Ele sempre foi bom marido e pai até deixar de o ser.” Acrescenta Nancy, para rematar: “Tive de me divorciar porque ele foi condenado. Mas se ele sair da cadeia, poderemos voltar a casar. Eu já o perdoei. Se não o perdoasse, viveria amargurada.”

Vítimas assim são o sonho do Sistema atual. O Sistema que manda dar a outra face; que oferece “thoughts and prayers” mas não mexe um dedo para resolver situações. O problema é que pessoas desta qualidade não têm um pingo de auto preservação e instinto de sobrevivência e colocam em perigo também os outros, já que um predador raramente ataca uma presa só.