... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, September 27, 2018

Cartoons Versão Gay



Recentemente, uma “polémica” encheu as notícias sobre uma dupla da Rua Sésamo, Egas e Becas (em inglês Ernie e Bernie). O criador dos bonecos, Mark Saltzman, disse que a dinâmica entre Ernie e Bernie era a de um casal, melhor dizendo “lovers”. Isto foi tomado como uma corajosa afirmação pró-sexualidade aberta, gay rights, educativa, enfim, uma série de rótulos.

Vamos ser sérios. Os bonecos existem desde o início dos anos 80, e agora Saltzman diz que sempre (sempre!) foram namorados, mas ninguém teve coragem de explicitar (incluindo ele). Naquela altura, não era assim tão comum assumir-se a homossexualidade – exceto Freddie Mercury e outros corajosos. Era a época da SIDA, da ignorância, “olha o maricas”, etc. Agora, não só é comum como é moda, entrou no mainstream, é déjà vu. Hoje, cortam-te a cabeça socialmente se fores homofóbico.  Portanto, Saltzman, deixa de ser cocó. Se querias dizer algo, dissesses quando era necessário ter tomates para o fazer e não agora quando é super fashion fazê-lo.

Mas esta não é a questão, sequer. A questão é: porque é que, nos últimos anos, se assiste à necessidade de inventar uma vida sexual para personagens unicamente destinadas ao entretenimento infantil? As crianças não têm qualquer interesse nem neste tipo de interação nem na orientação sexual de cada um. Costumam ver criancinhas a perguntar se alguém é gay, hetero ou bissexual? Não. Simplesmente porque este é um assunto que só interessa aos adultos. É uma ideia que só aflora o mundo infantil quando foi lá plantada por um adulto. Porque terão os adultos interesse em fazer tal implante? Ademais, porque tem a sociedade interesse nisso? São questões que merecem ponderação

Uma breve pesquisa na net demonstra que estes mesmos bonecos que ensinam os miúdos da pré-escola a contar já foram usados em protesto numa petição online em 2011 que requeria um casamento na Rua Sésamo entre Ernie e Bernie  – não será necessário um génio para saber que os autores e signatários da petição não foram crianças, embora (e tenhamos sempre isto em mente!) os espetadores da Rua Sésamo o sejam. Uma decisão do Supremo Tribunal de Nova Iorque sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo foi noticiada com uma foto de Ernie e Bernie em 2013. Inocente? Só para quem não perceber de marketing ou de psicologia.

Mas não se trata apenas de Ernie e Bernie. Os desenhos animados Sailor Moon, por exemplo, já há muito que têm pares homossexuais de homens e mulheres e fóruns onde estas relações são discutidas ao pormenor. Novamente: os desenhos animados são para crianças, supostamente, mas estes fóruns na net são mantidos por adultos… as crianças não têm interesse em saber se a Sailor Uranus é secretamente interessada nos dois sexos, se é trans ou que raio se passa dentro das suas cuecas. O que interessa às crianças na Sailor Moon é apenas a magia das miúdas que se transformam em guerreiras.

Se vamos extremar as relações dos desenhos animados, arrogo-me o direito de me interrogar agora sobre as relações entre o Snoopy e o Charlie Brown, entre o Garfield e o Jon, entre o Wallace e o Gromit. Será zoofilia?  E que dizer da Heidi e do avô, da obsessão do pai do Pinóquio para ter um filho com aquele suspeito narizinho? Acho que o melhor é ficarmos por aqui e deixar o mundo dos miúdos com direito a ser crianças… sem sexualidade prematura imposta à força.

Thursday, September 13, 2018

Léxico mal-entendido


Um rapaz toca guitarra. Não sei quem é nem o que toca, mas a melodia é desajeitada (ou é ele que é desajeitado, não sei bem definir ainda). 
Estão algumas pessoas sentadas aqui fora, em mesinhas improvisadas, com velas gastas. Nas escadinhas de pedra antiga, há gatos sujos a lambuzarem restos de sardinhas e pares improváveis por entre copos muito sujos com o que se adivinha ser vinho tinto. 
A minha roupa molhada está a secar, pesada ainda e oscila pouco. Não há muito vento esta noite. 
Entre o cão imponente da rapariga atiradiça aqui da frente e o ar intrometido da velhota que espreita pela janela, há muitos risos aos quais se junta o meu. 
Há gente de todas as etnias por aqui. Batem palmas ao rapaz desajeitado, e não é porque ele mereça. Em alguns, poderá opinar-se que talvez o vinho já faça efeito (e, no entanto, é ainda cedo). Melhor assim. Há uma atmosfera de alegria sem razão. A melodia flutuante contribui para isso. Contrariamente ao que se pensa, no meio de uma Babel não são precisos aditivos para florescerem sorrisos. 
Não há propriamente delicadeza nas pessoas, porque existe uma ansiedade breve... Mas existe vontade de partilha. Também eu me desajeito com as chaves e, como é meu costume perante a frustração, rio-me de mim própria. Um rapaz hesitante pergunta-me se quero ajuda. Hesitante porque é a segunda vez que passa por mim mas esperou pela segunda vez para me perguntar. Mas aceito. Já que decidi que é tempo de deixar de ser orgulhosa. É simpático, não é intrusivo. Acho que gostaria dele, caso lhe prestasse atenção. Porque é que não lhe presto atenção? Hei-de refletir sobre isso mais tarde.  
Há uma rapariga que dança algo vagamente tribal, e tão rapidamente que parece perder densidade física; volatiza-se como vapor perante os nossos olhos.
Entretanto, tudo aqui é aconchegante, de calor e de diversão. Se fizesse o exercício de pensar, concluiria que gosto disto.  Até porque existe aqui uma secreta vantagem: isto não me recorda de nada, nem lugares, nem pessoas, nem cheiros, nem sons, nem sequer línguas (já que no meio das várias etnias todos tentam, atrapalhadamente, ensaiar o idioma local, com maior ou menor sucesso). Quanta maravilha se esconde numa tábua rasa!
Como se me lesse os pensamentos, B. atira uma das suas sentenças (sem que houvesse frase que iniciasse a conversação):
- É o que dá termos vindo viver para o fim do mundo!
-… Sabes que o mundo é redondo? -pergunto, com mal disfarçado riso – e, portanto, segundo toda a lógica, o que para ti é o fim do mundo pode ser o princípio do mundo de outra pessoa.
- Para o diabo com respostas de mulheres espertas!
- Sabes o que é que tem mais piada?
- Diz lá! – porque, embora desconfiado e na posição de perdedor deste jogo que jogamos tantas vezes, B. não resiste a continuar com a conversa. É como uma criança que ainda não abriu o brinquedo ao meio.
- É que adoras este sítio!
-… Sim, confesso. Estou mesmo a gostar. Gosto… dadas as circunstâncias.
Neste momento, faço um ar trágico-cómico e dou o mote final:
- Isso não, não digas essas conversas cheias de reticências! Olha que é mesmo muito feio quase pedir desculpa por gostar de uma coisa.