Um rapaz toca guitarra. Não sei quem é nem o que toca,
mas a melodia é desajeitada (ou é ele que é desajeitado, não sei bem definir ainda).
Estão algumas pessoas sentadas aqui fora, em mesinhas
improvisadas, com velas gastas. Nas escadinhas de pedra antiga, há gatos sujos
a lambuzarem restos de sardinhas e pares improváveis por entre copos muito
sujos com o que se adivinha ser vinho tinto.
A minha roupa molhada está a secar, pesada ainda e oscila
pouco. Não há muito vento esta noite.
Entre o cão imponente da rapariga atiradiça aqui da
frente e o ar intrometido da velhota que espreita pela janela, há muitos risos
aos quais se junta o meu.
Há gente de todas as etnias por aqui. Batem palmas ao
rapaz desajeitado, e não é porque ele mereça. Em alguns, poderá opinar-se que
talvez o vinho já faça efeito (e, no entanto, é ainda cedo). Melhor assim. Há
uma atmosfera de alegria sem razão. A melodia flutuante contribui para isso.
Contrariamente ao que se pensa, no meio de uma Babel não são precisos aditivos
para florescerem sorrisos.
Não há propriamente delicadeza nas pessoas, porque existe
uma ansiedade breve... Mas existe vontade de partilha. Também eu me desajeito
com as chaves e, como é meu costume perante a frustração, rio-me de mim própria.
Um rapaz hesitante pergunta-me se quero ajuda. Hesitante porque é a segunda vez
que passa por mim mas esperou pela segunda vez para me perguntar. Mas aceito.
Já que decidi que é tempo de deixar de ser orgulhosa. É simpático, não é
intrusivo. Acho que gostaria dele, caso lhe prestasse atenção. Porque é que não
lhe presto atenção? Hei-de refletir sobre isso mais tarde.
Há uma rapariga que dança algo vagamente tribal, e tão
rapidamente que parece perder densidade física; volatiza-se como vapor perante
os nossos olhos.
Entretanto, tudo aqui é aconchegante, de calor e de
diversão. Se fizesse o exercício de pensar, concluiria que gosto disto.
Até porque existe aqui uma secreta vantagem: isto não me recorda de nada, nem
lugares, nem pessoas, nem cheiros, nem sons, nem sequer línguas (já que no meio
das várias etnias todos tentam, atrapalhadamente, ensaiar o idioma local, com
maior ou menor sucesso). Quanta maravilha se esconde numa tábua rasa!
Como se me lesse os pensamentos, B. atira uma das suas
sentenças (sem que houvesse frase que iniciasse a conversação):
- É o que dá termos vindo viver para o fim do mundo!
-… Sabes que o mundo é redondo? -pergunto, com mal
disfarçado riso – e, portanto, segundo toda a lógica, o que para ti é o fim do
mundo pode ser o princípio do mundo de outra pessoa.
- Para o diabo com respostas de mulheres espertas!
- Sabes o que é que tem mais piada?
- Diz lá! – porque, embora desconfiado e na posição de
perdedor deste jogo que jogamos tantas vezes, B. não resiste a continuar com a
conversa. É como uma criança que ainda não abriu o brinquedo ao meio.
- É que adoras este sítio!
-… Sim, confesso. Estou mesmo a gostar. Gosto… dadas as
circunstâncias.
Neste momento, faço um ar trágico-cómico e dou o mote
final:
- Isso não, não digas essas conversas cheias de
reticências! Olha que é mesmo muito feio quase pedir desculpa por gostar de uma
coisa.