... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 21, 2018

Lost in Translation



Não sei quem disse “A História tem a perspetiva do vencedor”. Em boa verdade, jamais conhecemos a versão dos vencidos, pelo menos com latitude suficiente para que esta se possa tornar, também, parte da História. Como tal, é legítimo afirmar que não há um conhecimento real do passado – aliás, nem tão pouco existe um conhecimento do presente, cujas situações também nos são apresentadas somente sob a perspetiva do vencedor, ante o silêncio de um vencido que não interessa às multidões.

Apesar da História ser, afinal, histórias, continuamos a estudar o passado de modo reverencial nas escolas, porque é importante conhecer o que veio antes de nós, já que compreendê-lo é entender o porquê de estarmos nesta linha atual e seria, também, fulcral para precaver futuros (embora isso talvez seja já esperar demais, pois raramente a História ensina algo ao Homem; a Humanidade é bicho que, coletivamente, não aprende muito com a experiência).

Teria eu uns 14 anos quando, pela primeira vez, me dei conta de que a História que eu aprendia não era a mesma que se aprendia noutros lugares. Isto é, o assunto era igual mas a narrativa era bem diversa. Tinha uma amiga dinamarquesa, que frequentava o mesmo ano que eu mas no seu país. Em certo momento, disse-lhe que sabia que os Vikings eram os antepassados dos Dinamarqueses, e, o mais delicadamente que me foi possível, acrescentei “um povo guerreiro, bárbaro, que pilhava tudo à sua passagem, grandes marinheiros mas destruidores e rudes.” Ela admirou-se com sinceridade: “Os Vikings?! Foram a nossa maior glória! Os maiores descobridores de terras, os melhores marinheiros do mundo, os exímios construtores de barcos! Sem eles, os restantes povos nunca saberiam que existem mundos mais além!” Felizmente, éramos ambas de temperamento flexível, mas ficámos bastante confusas quanto ao que tínhamos aprendido nas nossas escolas, e rapidamente nos demos conta que o que na minha cultura era relembrado como “barbárico” na dela era exaltado como “glorioso”. Isso não deixou de nos fazer rir, bem como desconfiar dos manuais que tínhamos…

Hoje em dia, verifico uma história semelhante relativamente aos Descobrimentos portugueses e ao modo como são ensinados noutros países. Em Portugal, é a grande epopeia, o dar novos mundos ao mundo, os heróis das caravelas, enfim, todo um imaginário mítico sob um qual repousa um país que olha para o mar como se esperasse que do horizonte renascessem as suas glórias passadas, mas que no presente vive continuamente na cauda da Europa e sob esse espírito messiânico do que há de vir.

No entanto, noutros locais, a História portuguesa não é vista com esse glamour. Verifico pelos manuais escolares dos meus filhos que Portugal é visto como um descobridor relevante, sim, mas ávido de dinheiro, brutal e primitivo, sem respeito por outras culturas e pelo ser humano em geral, tão sôfrego que tomou más decisões contínuas e assim perdeu o império, tão falho de bons sentimentos que os melhores de entre os portugueses se revoltaram contra a nação e preferiram ficar para sempre fora ou contra ela.

O que é, então, a História quando traduzida de cultura para cultura? Talvez a História não passe, como disse Napoleão, de uma fábula na qual concordamos.

Friday, December 7, 2018

Verdade ou Consequência



John Chau, missionário evangélico, foi recentemente morto pelos Sentineleses quando invadiu a ilha de Sentinela do Norte com o intuito de lhes levar a ideia de Cristo, i.e. a salvação segundo os evangélicos. Pensava eu que os tempos de missionários em busca de tornar povos pagãos mais iluminados já fazia parte dos livros, mas enganei-me. Encontro certa ironia no facto desta morte por um ideal religioso não ser encarada como fanatismo. Se Chau fosse muçulmano e tivesse nascido no Médio Oriente, não seria esse quase-suicídio em nome de Deus visto como tal? Mas é americano e cristão, portanto tal pensamento não é exposto pelos media. Curiosa balança com duas medidas tem a nossa sociedade! Ainda assim, há que admitir que Chau agiu ilegalmente, já que é estritamente proibido pelo governo indiano visitar a ilha. Mas este não é o problema maior, pois várias coisas de bem neste mundo tiveram de ser feitas ilegalmente (e.g.: lutar contra os nazis ou acabar com a escravatura, nenhuma delas comparável a este feito, mas apenas exemplo de que “legal” e “ético” não são sinónimos). O problema é que Chau era pouco inteligente. Primeiro, sabia que estava a colocar a sua vida em risco – ou era um narcisista que desejava ser lembrado como “mártir” ou um completo idiota; segundo, dirigiu-se aos indígenas falando-lhes em inglês quando eles não conhecem o idioma, logo era de esperar que levasse com flechas porque os indígenas não sabiam se Chau falava de canibalismo ou de amor. Como pretendia ele levar-lhes a palavra de Cristo de rajada se eles não percebiam patavina da linguagem?

Noutro espectro religioso, a 2 de dezembro começou Hanukkah, a festa das luzes judaica. Em 2016, coincidiu ser na noite de Natal, o que não é nada comum e levou a que o meu pai contasse algumas piadas. Tudo isto me leva ao tema da tolerância religiosa e do pensamento e direito individuais.
Como todos, eduquei o meu filho dentro das minhas tradições e crenças. Não obstante, procurei dar resposta às suas (inúmeras!) perguntas e mostrar-lhe que há quem acredite noutras coisas, o que não foi difícil, já que convivíamos com outras culturas. Assim, ele foi à sinagoga, foi também à igreja católica, e – mais tarde, com colegas – a uma igreja protestante e a um templo budista. Tem, também, colegas hindus. Disto, resultou algo curioso que foi ele comunicar-me, do alto dos seus dez maduros anos de idade, que “fez uma decisão sobre Deus”. Acontece que a sua decisão… não é a minha. “Espero que não fiques triste, mãe, eu já decidi aquilo em que acredito.”

Não é inusitado ele pensar por si. Já aos três anos, me informou com solenidade que tinha escolhido a sua equipa de futebol, diferente da minha e dos coleguinhas. Apesar do colégio onde andava ser junto do Estádio da Luz, afirmou “Sou dos outros.” Sei que nem todas as crianças têm uma persona tão firme e independente, mas, regra geral, todos lutamos pelo nosso direito à individualidade.

É um direito ser o que queremos. Escolher as nossas crenças e amores. Impor a nossa verdade aos outros não é dar-lhes a salvação. É oferecer-nos um espelho. Tais atitudes costumam resultar pouco com seres humanos, sejam eles nossos filhos ou vivam em ilhas do outro lado do globo. Como a ciência atual tem provado, até um clone tem tendência à revolução.