A
nossa Amizade (à falta de melhor e mais sólida palavra) durou 24
anos. Conheceu-me adolescente, e antes de eu ver em mim a pessoa que
sou, já ela me via. Leu-me, como se eu fosse um livro aberto, antes
de eu conhecer bem as minhas páginas.
Nada
fazia pensar que nos tornaríamos tão próximas, porque um grande
fosso etário nos afastava. Mas corria, subterrâneo, aquele fio de
intuição rara que liga duas pessoas predestinadas a entenderem-se e
a criarem laços fortes, apesar das suas diferenças condicionais.
Por
conta dessa predestinação inexplicável, um dia deixei escapar na
sua presença algo que vinha guardando na minha reserva habitual e
que era de partilha dolorosa e difícil. Quando a encarei de frente,
encontrei-a comovida para lá do expectável. Apercebi-me, então,
de um mundo invisível de experiências comuns, no seu passado e no
meu (então) presente, que nos unia e que nenhuma confessava de ânimo
leve. “Se há coisa que não faço com frequência é abrir a arca
destas memórias” dizia ela. Desde então, a sua personalidade
resiliente e fibrosa, que passava por orgulho aos olhos de tantos,
passou a ser minha confidente.
Tudo
nela era firmeza de valores, pensamento claro, lógica dedutiva. “Não
me desqualifiquem como ser pensante” dizia quando alguém a
contestava com abstrações ocas e vazias, sem ligação à
realidade. A sua inteligência singular era rara, porque conhecedora
dos seus pontos mais fortes e menos fortes, anímica, viva, plural,
com fome do que não conhecia ainda, sem tempo para o que sabia ser
inútil e admiradora fervorosa do que considerava belo e grande.
Não
se retraía em explicar os seus ideais a alguém: “Não tento
converter ninguém; só explico. Quem quer pensar, use a cabeça.”
No
seu coração enorme não cabiam todos, ao contrário dessa vazia
frase popular. Confessava: “Nem todos merecem. Mas cultivo as
sementinhas dos que são importantes, sempre.”
Tinha
aquela força magnética das pessoas que transformaram as muitas
dores e adversidades em criação, dos que nunca se derrubam, porque
a sua energia corajosa a movia como uma mola para enfrentar fosse o
que fosse, contra injustiças e crueldades, sobretudo em se tratando
de crianças, cujas injustiças que sofriam sempre a tocavam
particularmente.
Nunca
lhe pedi ajuda, mas ela sempre se ofereceu para me auxiliar. Recordo
a sua postura, como uma árvore, à minha frente. Não tinha receio
de enfrentar perigos, mas mesmo assim não se julgava corajosa. “Sou
só menos borboleta do que tu” dizia, referindo-se à minha
fragilidade física.
Tinha
por hábito discutir certos assuntos da actualidade comigo e fazia-o
de forma muito peculiar. Começava por apresentar o assunto que tinha
lido ou ouvido nos media. Depois, perguntava a minha opinião
(fundamentada e não simplesmente uma opinião “porque sim” ou um
capricho pessoal). Só em seguida dava a sua. Como tínhamos sempre
ideias muito parecidas, não havia grande discussão. Mas não era
raro que uma dissesse um pormenor em que a outra não tinha pensado.
Outro
entretenimento eram os seus esquemas escritos. Não era adepta das
novas tecnologias, das quais até troçava um pouco. Mas não
desistia do papel e da caneta. “Queres ouvir uma coisa?” Tinha
ideias originais, era contrária a seguir a carneirada das multidões,
e, sobretudo, era sagaz a ler pessoas. Por isso mesmo, retorquia,
frontal, a certas hipocrisias sociais. Creio bem que era,
secretamente, temida por isso. Ouvi certa pessoa de nomeada dizer
que a “Prof. Maria Simas era uma instituição!” Quando lho
contei, ela riu-se muito alto e contestou: “Mais acção e menos
palavreado, isso é que sim!”
Muitas
vezes lhe disse que ela podia ter feito uma carreira académica, mas
a todos os elogios respondia “Não me carregues de adjectivos!”
De resto, importavam-na mais o grande carinho dos ex-alunos, crianças
que tornou em adultos, sonhos que ajudou a construir.
Falava
sempre do filho, netos e nora no superlativo. Mas não era adepta da
família tradicional, como fardo e obrigação. Quanto a
companheiros, era firme: “não uses a palavra para nomear quem
nunca acompanhou.” De progenitores, tinha a mesma visão directa:
“Há pais e mães dos quais duvidamos se os filhos terão nascidos
deles ou de uma flor, tal é a falta de afecto... Olha que até as
ratazanas defendem os filhos quando são atacados!”
Tive
a sorte de ela copiar para mim (ou antes, para o meu filho) as suas
dicas de como ensinar uma criança a ler, bem como as primeiras
noções de matemática, isto quando ele ainda tinha três anos.
Achei prematuro, mas ela disse-me que já tinha visto muitas crianças
e que tinha a certeza que ele era muitíssimo precoce, o que se veio
a confirmar. “Nunca me enganei!...” disse-me, sem esconder o seu
orgulho de mestra.
Fiel
à sua veia de pedagoga, ouvi dela das melhores frases de orientação,
das quais destaco: “Não ouças conselhos de ninguém, olha antes
para as suas vidas. Se forem exemplo para ti, podes aprender alguma
coisa. De contrário, segue a tua cabeça.”; “Se te desapontares
com A ou com B, lembra-te que a natureza do burro é dar coices.”;
“Não tenhas problemas em que certas pessoas te considerem
diferente deles; isso é uma grande distinção.”; “As pessoas
são como os alimentos: um pouco de todos é bom, de alguns guarda
muita distância; e nunca devemos recriminar-nos por uma indigestão,
porque a embalagem, geralmente, é apelativa.”; “Certos seres não
têm emenda, pois sabes que o direito do anzol é ser torto.”
Porém,
ultimamente, dizia-se exausta. Confidenciou um dia: “Este mundo
tornou-se tão incompreensível e feio que já vou tendo menos pena
de o deixar.” Deixou-o, e assim ficou um fosso onde antes estava a
sua presença, a sua voz, o seu amor.
Querida
Maria, jamais nos esquecemos, apenas nos habituamos à perda
definitiva de alguém. O nosso encontro continua, continuará...
sempre.