... "And now for something completely different" Monty Python

Tuesday, January 15, 2019

Breve recordação da eterna Amiga



A nossa Amizade (à falta de melhor e mais sólida palavra) durou 24 anos. Conheceu-me adolescente, e antes de eu ver em mim a pessoa que sou, já ela me via. Leu-me, como se eu fosse um livro aberto, antes de eu conhecer bem as minhas páginas.

Nada fazia pensar que nos tornaríamos tão próximas, porque um grande fosso etário nos afastava. Mas corria, subterrâneo, aquele fio de intuição rara que liga duas pessoas predestinadas a entenderem-se e a criarem laços fortes, apesar das suas diferenças condicionais.

Por conta dessa predestinação inexplicável, um dia deixei escapar na sua presença algo que vinha guardando na minha reserva habitual e que era de partilha dolorosa e difícil. Quando a encarei de frente, encontrei-a comovida para lá do expectável. Apercebi-me, então, de um mundo invisível de experiências comuns, no seu passado e no meu (então) presente, que nos unia e que nenhuma confessava de ânimo leve. “Se há coisa que não faço com frequência é abrir a arca destas memórias” dizia ela. Desde então, a sua personalidade resiliente e fibrosa, que passava por orgulho aos olhos de tantos, passou a ser minha confidente.

Tudo nela era firmeza de valores, pensamento claro, lógica dedutiva. “Não me desqualifiquem como ser pensante” dizia quando alguém a contestava com abstrações ocas e vazias, sem ligação à realidade. A sua inteligência singular era rara, porque conhecedora dos seus pontos mais fortes e menos fortes, anímica, viva, plural, com fome do que não conhecia ainda, sem tempo para o que sabia ser inútil e admiradora fervorosa do que considerava belo e grande.

Não se retraía em explicar os seus ideais a alguém: “Não tento converter ninguém; só explico. Quem quer pensar, use a cabeça.”

No seu coração enorme não cabiam todos, ao contrário dessa vazia frase popular. Confessava: “Nem todos merecem. Mas cultivo as sementinhas dos que são importantes, sempre.”

Tinha aquela força magnética das pessoas que transformaram as muitas dores e adversidades em criação, dos que nunca se derrubam, porque a sua energia corajosa a movia como uma mola para enfrentar fosse o que fosse, contra injustiças e crueldades, sobretudo em se tratando de crianças, cujas injustiças que sofriam sempre a tocavam particularmente.

Nunca lhe pedi ajuda, mas ela sempre se ofereceu para me auxiliar. Recordo a sua postura, como uma árvore, à minha frente. Não tinha receio de enfrentar perigos, mas mesmo assim não se julgava corajosa. “Sou só menos borboleta do que tu” dizia, referindo-se à minha fragilidade física.

Tinha por hábito discutir certos assuntos da actualidade comigo e fazia-o de forma muito peculiar. Começava por apresentar o assunto que tinha lido ou ouvido nos media. Depois, perguntava a minha opinião (fundamentada e não simplesmente uma opinião “porque sim” ou um capricho pessoal). Só em seguida dava a sua. Como tínhamos sempre ideias muito parecidas, não havia grande discussão. Mas não era raro que uma dissesse um pormenor em que a outra não tinha pensado.

Outro entretenimento eram os seus esquemas escritos. Não era adepta das novas tecnologias, das quais até troçava um pouco. Mas não desistia do papel e da caneta. “Queres ouvir uma coisa?” Tinha ideias originais, era contrária a seguir a carneirada das multidões, e, sobretudo, era sagaz a ler pessoas. Por isso mesmo, retorquia, frontal, a certas hipocrisias sociais. Creio bem que era, secretamente, temida por isso. Ouvi certa pessoa de nomeada dizer que a “Prof. Maria Simas era uma instituição!” Quando lho contei, ela riu-se muito alto e contestou: “Mais acção e menos palavreado, isso é que sim!”

Muitas vezes lhe disse que ela podia ter feito uma carreira académica, mas a todos os elogios respondia “Não me carregues de adjectivos!” De resto, importavam-na mais o grande carinho dos ex-alunos, crianças que tornou em adultos, sonhos que ajudou a construir.

Falava sempre do filho, netos e nora no superlativo. Mas não era adepta da família tradicional, como fardo e obrigação. Quanto a companheiros, era firme: “não uses a palavra para nomear quem nunca acompanhou.” De progenitores, tinha a mesma visão directa: “Há pais e mães dos quais duvidamos se os filhos terão nascidos deles ou de uma flor, tal é a falta de afecto... Olha que até as ratazanas defendem os filhos quando são atacados!”

Tive a sorte de ela copiar para mim (ou antes, para o meu filho) as suas dicas de como ensinar uma criança a ler, bem como as primeiras noções de matemática, isto quando ele ainda tinha três anos. Achei prematuro, mas ela disse-me que já tinha visto muitas crianças e que tinha a certeza que ele era muitíssimo precoce, o que se veio a confirmar. “Nunca me enganei!...” disse-me, sem esconder o seu orgulho de mestra.

Fiel à sua veia de pedagoga, ouvi dela das melhores frases de orientação, das quais destaco: “Não ouças conselhos de ninguém, olha antes para as suas vidas. Se forem exemplo para ti, podes aprender alguma coisa. De contrário, segue a tua cabeça.”; “Se te desapontares com A ou com B, lembra-te que a natureza do burro é dar coices.”; “Não tenhas problemas em que certas pessoas te considerem diferente deles; isso é uma grande distinção.”; “As pessoas são como os alimentos: um pouco de todos é bom, de alguns guarda muita distância; e nunca devemos recriminar-nos por uma indigestão, porque a embalagem, geralmente, é apelativa.”; “Certos seres não têm emenda, pois sabes que o direito do anzol é ser torto.”

Porém, ultimamente, dizia-se exausta. Confidenciou um dia: “Este mundo tornou-se tão incompreensível e feio que já vou tendo menos pena de o deixar.” Deixou-o, e assim ficou um fosso onde antes estava a sua presença, a sua voz, o seu amor.

Querida Maria, jamais nos esquecemos, apenas nos habituamos à perda definitiva de alguém. O nosso encontro continua, continuará... sempre.