... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, February 15, 2019

Morrer na haste


Há em “Os Maias” uma frase atirada como se Eça de Queiroz tivesse nojo da vida: “Caiu-me a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!” É esta a frase que me vem à memória sempre que estão em causa os numerosos crimes contra crianças que são praticados em Portugal.

A semana passada, mais uma criança foi assassinada. Desta vez, uma bebé de dois anos. Há quem diga “com dois anos já não é bebé!” Será que têm noção mínima do desenvolvimento infantil? Já trataram de uma criança? Têm ideia da capacidade de defesa que tem uma bebé de dois anos perante o poder físico de um homem adulto motivado pela raiva? Não têm.

O facto de ter sido o pai da Lara a matá-la não desculpa o crime; pelo contrário: aumenta-o. Se um pai magoa um filho, seria capaz de fazer o mesmo a outro qualquer. Ou seja, se é verdade que acreditamos num “amor maior” pelos filhos, conversamente há que acreditar que a agressão grave a um descendente, no caso um que nem se pode defender, é prova da perversidade inenarrável de um ser humano.

Muitas foram as pessoas que comentaram a notícia da menina morta no Seixal como se o progenitor tivesse tido um acesso de loucura – o que é incompatível com o facto da mãe da Lara ter apresentado queixas contra as ameaças de morte que ele lhe fazia, tendo por alvo tanto ela como a filha, o que levou a Polícia a classificar o caso como “alto risco” há dois anos atrás. Aqueles que não sabem como funciona um processo de violência em Tribunal, acham que o arquivamento do caso por insuficiência de prova significa que não se passava nada. Outros tantos foram os que disseram que o pai estava desesperado porque era um “casal em conflito” que “estava a lutar pela guarda da menina”. Na realidade, os pais da Lara separaram-se quando a menina tinha meses (ou antes: a mãe quis separar-se, o que é o mais comum nos casos em que há violência e em que a própria processual não termina... o que só significa que o elemento masculino não consegue ir em frente com a sua vida emotiva, dando por finda a relação). A “luta” assim referida não passa de uma desculpa para poder continuar a exercer domínio e para continuar a ter contacto com a ex, seja para seduzir, seja para magoar. A importância dada à criança é só esta. A própria agressão à criança é uma forma de agredir a mulher. Veja-se o que deixou escrito o pai da Lara – a culpa era “dela”... “pelo menos, não ficas com a menina.” A vingança está feita. E a criança? A criança era propriedade, nem pessoa chegou a ser na sua óptica de homem feudal, era sua por direito e, como sua propriedade, ele usou como entendeu e acabou com ela quando achou por bem.

A sociedade diz revoltar-se profundamente com crimes cometidos contra os inocentes. As pessoas ficam chocadas com os assassinatos de crianças, com os assassinatos de mães que deixam órfãos (13 órfãos em Janeiro, em que morreram 9 mulheres às mãos de companheiros ou ex-companheiros em Portugal), com as violações de crianças que em Portugal se chamam suavemente “abuso sexual”, mesmo com penetração. Aqui começa o problema: ficamos incomodados com a realidade, usamos eufemismos, ficamos confortáveis ao virarmos a cara. Ainda bem que não é connosco. Excepto que, um dia, pode ser. É que ainda está para se inventar uma protecção contra o horror, apesar da soberana arrogância com que algumas pessoas dizem “Comigo nunca se passará...”

Esta tentativa de auto-protecção não passa de uma vã esperança dos seres humanos que se julgam a viver numa bolha, longe de todo o mal, auto-vacinados porque vivem na ilusão de que são capazes de distinguir a maldade nos outros. É à conta desta falsa ideia que lemos testemunhos como os que foram dados na morte da pequena Lara, em que os vizinhos da avó (também morta pelo pai da Lara) se diziam “muito chocados, são coisas que só se vêem nos filmes!” e acrescentavam que “somos um bairro de boa gente, e isto são cenas de bairro de lata!”. O português falsamente acredita que a violência e o horror são coisas que se passam no Bairro da Jamaica, porque o homem de classe média jamais se presta a cenas de sangue e de baixa extracção. Quanto ao economicamente bem posicionado, esse é sempre um senhor! É também esta a postura cega na qual se baseia a nossa Justiça – basta para tal ler os acórdãos que sempre referem “a boa posição social” dos arguidos.

De igual modo, os amigos do pai da Lara referem que ele era um “bom pai, incapaz destas coisas”. Mesmo confrontados com o assumir do crime no testemunho escrito e confessado do criminoso... não acreditam! Defendem-no! Era “bom pai”. Há que admitir, pois, que a nossa sociedade sofre de uma profunda dissonância cognitiva. Perante a prova provada, recusa ver, não quer, defende o oposto. Assassinou a filha, mas... tratou-a bem!

E que dizer de alguma comunicação social que ajuda a esta paródia triste, dizendo que “apesar de asfixiada, a menina não apresentava sinais de agressão”?! O que é uma asfixia mortal senão uma agressão? Que esperava o jornalista? Que a bebé travasse uma luta de força? Pretende-se, com esta frase, que tenhamos o pensamento de que foi uma asfixia suave, uma morte doce?!

Portugal...Vai tomar (um) banho.


Friday, February 1, 2019

Açores: Caraíbas ma non troppo


Este mês li artigos de promoção turística dos Açores em diferentes publicações cujo título variava à roda desta ideia: “Açores, as Caraíbas do Atlântico”. Em amigável discussão com um açoriano do ramo do Turismo sobre este tópico, não conseguimos acordo, já que para o meu amigo é crucial a venda do produto (por óbvias razões) enquanto que para mim os artigos, pelo próprio título, são publicidade enganadora e, ademais, provocam o riso.

Atente-se, primeiro, num certo pauperismo dos conhecimentos geográficos do construtor da ideia “Açores, Caraíbas do Atlântico”. O problema é que as Caraíbas (as originais!) situam-se... no Atlântico. Para os que de mim duvidam, consultem um mapa. O mar das Caraíbas é no Oceano Atlântico. Não existe um oceano Caribenho dentro do Oceano Atlântico, como decerto aprendemos todos na instrução primária. Portanto, repare-se no nonsense que isto é.

Diz-me o meu amigo que o jornalista que concebeu esta ideia é um americano de New York. Se foi o caso, trata-se de um idiota sem par, dado que New York é na Costa Leste dos E.U.A. , estando as Caraíbas mais ou menos em frente dos E.U.A. (um pouco mais abaixo). Ou seja, o senhor tinha obrigação de saber. Tanto mais que Cristovão Colombo – historicamente, o descobridor do continente americano – descobriu as ditas Caraíbas, na verdade, e não a parte continental da América. Por este simples facto se atesta a proximidade. No entanto, como é que o dito jornalista veio aos Açores? Terá sido parte de uma daquelas viagens promocionais para jornalistas que, depois, são pagas com artigos? Se assim foi e se o artigo passou, primeiramente, pela aprovação do Turismo dos Açores, então... por amor à minha liberdade não comento, e até sublinho que tudo isto são perguntas apenas.

Outras questões sobre este conceito. As Caraíbas têm um clima tropical. São a imagem de ilhas tropicais com que estamos habituados a sonhar: mar turquesa, sol abrasador, calor de derreter. Além disso, há duas estações: a seca e a chuvosa, sendo que uma delas implica furacões que não são brincadeira – na zona, os furacões são categorizados numa escala até 5, e não é raro obterem a escala máxima. Isto é minimamente parecido com os Açores?…

Alguém que não conheça os Açores, lê estes artigos, mune-se de fato de banho, calção e chapéu de palhinha para passar um Verão tropical nos Açores... Aí vem ele de rede de estender... e depara-se com um Verão mais ao estilo do de Londres, em que chove quase de certeza metade dos dias. O turista pensava que se ia estender em praias de areia branca e fina... mas nada disso. Vê praias vulcânicas, claro, e paisagens ao estilo irlandês, verdes e luxuriantes, um bocado nevoentas quase sempre, sobretudo se se aventurar para Ocidente. Então o hino não oficial dos Açores não é “Ilhas de Bruma”? Brumas e nevoeiros não faltam! Quais “Caraíbas”?!

Tenho, pois, sincera dúvida sobre a eficácia e legitimidade desta publicidade em forma de artigo. Mas reitero com cuidado: esta é uma opinião baseada em questões, e não pretende ofender. É que todos sabemos que Ricardo Araújo Pereira, por exemplo, pode dizer à vontade o que entende, mas uma mulher quando se expressa publicamente tem destinos como o de Maria de Lurdes Rodrigues (uma académica que foi efectivamente presa por 3 anos por bloggar na internet certas opiniões – presa por difamação desses dois irmãos, o Estado e a Justiça, embora ela não tenha dito nada de mais grave do que diz, por exemplo, Miguel Sousa Tavares, sendo que a amplitude de quem o ouve ou lê é, no caso, muito maior). Sim, isto é Portugal. Um Portugal de quem ninguém fala – não lhes vá acontecer o mesmo.

Enfim, reservo o direito de não concordar com o meu respeitável amigo. Talvez as nossas visões não mais sejam iguais desde o dia em que um de nós escolheu ficar nas ilhas e a outra escolheu sair. Já o disse Vitorino Nemésio que, ao regressar às ilhas de passagem, se interrogou: “Será que começamos a ser estrangeiros onde nascemos?”. Já tantos escritores escreveram magistralmente sobre as ilhas sem não mais as pisarem senão na escrita que só isto é prova que as ilhas pouco mudam mas o ser humano sim, e que certos desejos são melhor sonhados ao longe que desapontadoramente realizados in loco

Sendo certo que há desilusões que não conseguimos evitar, esta deste artigo pub é certamente evitável: não enganemos a fauna turística com vãs promessas - os Açores não são as Caraíbas. E, já agora, não passemos por idiotas: estamos todos no Atlântico, my friend.