Há em “Os Maias” uma
frase atirada como se Eça de Queiroz tivesse nojo da vida: “Caiu-me
a alma a uma latrina, preciso de um banho por dentro!” É esta a
frase que me vem à memória sempre que estão em causa os numerosos
crimes contra crianças que são praticados em Portugal.
A semana passada, mais
uma criança foi assassinada. Desta vez, uma bebé de dois anos. Há
quem diga “com dois anos já não é bebé!” Será que têm noção
mínima do desenvolvimento infantil? Já trataram de uma criança?
Têm ideia da capacidade de defesa que tem uma bebé de dois anos
perante o poder físico de um homem adulto motivado pela raiva? Não
têm.
O facto de ter sido o pai
da Lara a matá-la não desculpa o crime; pelo contrário: aumenta-o.
Se um pai magoa um filho, seria capaz de fazer o mesmo a outro
qualquer. Ou seja, se é verdade que acreditamos num “amor maior”
pelos filhos, conversamente há que acreditar que a agressão grave a
um descendente, no caso um que nem se pode defender, é prova da
perversidade inenarrável de um ser humano.
Muitas foram as pessoas
que comentaram a notícia da menina morta no Seixal como se o
progenitor tivesse tido um acesso de loucura – o que é
incompatível com o facto da mãe da Lara ter apresentado queixas
contra as ameaças de morte que ele lhe fazia, tendo por alvo tanto
ela como a filha, o que levou a Polícia a classificar o caso como
“alto risco” há dois anos atrás. Aqueles que não sabem como
funciona um processo de violência em Tribunal, acham que o
arquivamento do caso por insuficiência de prova significa que não
se passava nada. Outros tantos foram os que disseram que o pai estava
desesperado porque era um “casal em conflito” que “estava a
lutar pela guarda da menina”. Na realidade, os pais da Lara
separaram-se quando a menina tinha meses (ou antes: a mãe quis
separar-se, o que é o mais comum nos casos em que há violência e
em que a própria processual não termina... o que só significa que
o elemento masculino não consegue ir em frente com a sua vida
emotiva, dando por finda a relação). A “luta” assim referida
não passa de uma desculpa para poder continuar a exercer domínio e
para continuar a ter contacto com a ex, seja para seduzir, seja para
magoar. A importância dada à criança é só esta. A própria
agressão à criança é uma forma de agredir a mulher. Veja-se o que
deixou escrito o pai da Lara – a culpa era “dela”... “pelo
menos, não ficas com a menina.” A vingança está feita. E a
criança? A criança era propriedade, nem pessoa chegou a ser na sua
óptica de homem feudal, era sua por direito e, como sua propriedade,
ele usou como entendeu e acabou com ela quando achou por bem.
A sociedade diz
revoltar-se profundamente com crimes cometidos contra os inocentes.
As pessoas ficam chocadas com os assassinatos de crianças, com os
assassinatos de mães que deixam órfãos (13 órfãos em Janeiro, em
que morreram 9 mulheres às mãos de companheiros ou ex-companheiros
em Portugal), com as violações de crianças que em Portugal se
chamam suavemente “abuso sexual”, mesmo com penetração. Aqui
começa o problema: ficamos incomodados com a realidade, usamos
eufemismos, ficamos confortáveis ao virarmos a cara. Ainda bem que
não é connosco. Excepto que, um dia, pode ser. É que ainda está
para se inventar uma protecção contra o horror, apesar da soberana
arrogância com que algumas pessoas dizem “Comigo nunca se
passará...”
Esta tentativa de
auto-protecção não passa de uma vã esperança dos seres humanos
que se julgam a viver numa bolha, longe de todo o mal, auto-vacinados
porque vivem na ilusão de que são capazes de distinguir a maldade
nos outros. É à conta desta falsa ideia que lemos testemunhos como
os que foram dados na morte da pequena Lara, em que os vizinhos da
avó (também morta pelo pai da Lara) se diziam “muito chocados,
são coisas que só se vêem nos filmes!” e acrescentavam que
“somos um bairro de boa gente, e isto são cenas de bairro de
lata!”. O português falsamente acredita que a violência e o
horror são coisas que se passam no Bairro da Jamaica, porque o homem
de classe média jamais se presta a cenas de sangue e de baixa
extracção. Quanto ao economicamente bem posicionado, esse é sempre
um senhor! É também esta a postura cega na qual se baseia a nossa
Justiça – basta para tal ler os acórdãos que sempre referem “a
boa posição social” dos arguidos.
De igual modo, os amigos
do pai da Lara referem que ele era um “bom pai, incapaz destas
coisas”. Mesmo confrontados com o assumir do crime no testemunho
escrito e confessado do criminoso... não acreditam! Defendem-no! Era
“bom pai”. Há que admitir, pois, que a nossa sociedade sofre de
uma profunda dissonância cognitiva. Perante a prova provada, recusa
ver, não quer, defende o oposto. Assassinou a filha, mas... tratou-a
bem!
E que dizer de alguma
comunicação social que ajuda a esta paródia triste, dizendo que
“apesar de asfixiada, a menina não apresentava sinais de
agressão”?! O que é uma asfixia mortal senão uma agressão? Que
esperava o jornalista? Que a bebé travasse uma luta de força?
Pretende-se, com esta frase, que tenhamos o pensamento de que foi uma
asfixia suave, uma morte doce?!
Portugal...Vai tomar (um)
banho.