... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, June 27, 2019

Os verdadeiros Acusados e os verdadeiros Acusadores


Foto: Jodie Foster no filme The Accused (1988)
Em memória de Cheryl A. Araújo

Em 1988, Jodie Foster teve o seu primeiro super êxito, recebendo da Academia o Óscar de Melhor Actriz pelo seu papel de Sarah Tobias em The Accused, protagonizando uma mulher que é violada num bar por três homens enquanto muitos outros assistem, aplaudem e incentivam.
O filme foi uma viragem decisiva na reflexão sobre violação, já que não havia até então filmes cujo tema fosse exclusivamente esse, embora outras longas-metragens abordassem o assunto como parte da trama narrativa.
cena da violação conjunta, aka gang-rape, (não abram o link na presença de crianças) continua, mais de 30 anos depois, a ser um dos três minutos mais violentamente gráficos da história do cinema. As filmagens – um simples faz de conta – foram tão traumatizantes que até os próprios actores que deram corpo aos violadores tiveram muita dificuldade em encarnar estas cenas, tendo vomitado e chorado frequentemente até as conseguir realizar, porque lhes custava a brutalidade das suas próprias personagens.
A violação tem lugar num espaço público, e o filme explora bem o animalismo da multidão de homens que, indirectamente (?) contribuem para o crime, fazendo literalmente o papel de claque para que a violação continue (outro vídeo que não devem abrir na presença de crianças). As cenas do interrogatório de Tribunal demonstram bem o quanto Sarah Tobias foi colocada pelo advogado de defesa dos criminosos numa posição de impossibilidade, pois se ela, a vítima, não tinha gritado “Ajudem-me!” mas apenas “Não, não, não!” não era taxativo, segundo este, que fosse clara a sua não-anuência. Esta cena, que parece legalmente ridícula aos olhos de quem nunca se sentou numa cadeira para prestar testemunho, é comum e não constitui nada de estranho num Tribunal onde se discute violação.
É, pois, muito claro no filme que a violação é um acto gratuito de violência, e ademais, violência exacerbada. Ainda assim, para espanto dos produtores, quando foram realizados os test screenings do filme (espécie de ante-estreia antes do lançamento perante uma audiência que fornece feedback em forma de questionário), Os Acusados recebeu a mais baixa pontuação que alguma vez um filme da Paramount tinha recebido até então, e a razão era simples: a audiência, em pleno 1988, manifestou-se dizendo que a personagem de Jodie Foster era provocante, sedutora e, por consequência merecia ser violada por três homens enquanto um restante bar repleto de público assistia e gritava por mais. No entanto, a produtora Sherry Lansing recusou a ideia de não lançar o filme – é para isto que servem os test screenings, para avaliar de um possível (in)sucesso ou não – e decidiu fazer novo teste com uma audiência de 20 mulheres, das quais 18 tinham experiência de uma violação, tendo sido vítimas ou conhecendo vítimas na sua esfera de íntimos. Os resultados foram inteiramente opostos. Foi desta forma que Os Acusados acabou por ver a luz do dia, tornando-se um sucesso tanto a nível crítico como a nível comercial.
Deve-se ponderar esta recepção inicial ao filme, e que ainda hoje, em 2019, 31 anos depois, podemos encontrar em qualquer caixa de comentários do YouTube, onde não faltam comentários do género “Mas o que fazia esta gaja num bar onde não iam gajas?” (o comentário mais suave) a outros, inteiramente gráficos, de comentadores que claramente têm prazer (sexual ou outro) em ver cenas de violação.
Mas esta não é a questão nem a história principal deste artigo.
O filme Os Acusados baseava-se, como os produtores disseram, numa história real, que ocorrera em 1983 na cidade de New Bedford, em Massachussets. Um caso que, pela forma como foi tratado pela Justiça, pelos Media e pela comunidade, acabou por se tornar notícia em todos os E.U.A. Tratou-se da gang rape feita à luso-americana Cheryl Araújo, onde foram réus em Tribunal não 3 mas sim 6 homens, todos eles portugueses.
A realidade da vida ultrapassa a ficção do cinema. Cheryl Araújo tinha 21 anos quando foi violada por quatro homens, sucessivamente, enquanto outros dois a agarravam e deram continuidade à violação, obrigando-a, ainda, a sexo oral (factos provados). Tudo isto aconteceu num bar, onde alguns dos presentes alegaram ter visto a violação – de facto, o testemunho de dois deles foi decisivo para que os violadores fossem presos – mas não terem conseguido impedir a mesma, ajudar a vítima ou sequer chamar a polícia por terem sido barrados por outros homens. As violações só terminaram porque Cheryl conseguiu libertar-se (não é claro se os homens se cansaram ou se houve um momento de confusão quando alternavam), tendo corrido para a rua em pânico, onde se colocou no meio do trânsito. Vestia apenas uma das meias e um casaco que estava completamente aberto. Dois dos violadores tentaram segui-la, mas vendo que um carro parava, voltaram rapidamente para dentro do bar.
O carro que parou ao ver “uma mulher nua no meio da estrada” era de dois americanos, os irmãos Michael e Dan O’Neill, onde também ia um seu amigo, Bobby Silva. Os homens, jovens na época, ainda hoje recordam como Cheryl estava aterrorizada. Agarrou-se ao pescoço de Dan com ambos os braços e à cintura dele com ambas as pernas e não mais o largou até que foi solta pela Polícia dessa posição, sendo que mesmo assim tiveram de lhe tirar os dedos um a um, tal o pânico que ela sentia, e que os três homens reconheceram imediatamente como genuíno. Cheryl conseguiu explicar-lhes que tinha sido violada no bar ali ao lado (Big Dan Tavern). Dan ficou com Cheryl, mas Michael e Bobby entraram no bar munidos de uma espécie de bastão para “ver o que se passava”, ideia que, mais tarde, Michael consideraria estúpida. Em Tribunal, disse que no bar toda a gente parecia normal, “a beber, a jogar” como se não tivessem violado nem visto uma violação. “Mas havia muito silêncio.” O silêncio ensurdecedor que, ainda hoje, é a marca das violações e de quem as esconde.
Cheryl foi analisada clinicamente e começou o calvário judicial que haveria de a tornar numa figura conhecida a nível nacional, ela que era uma jovem simples, filha de emigrantes portugueses, mãe de 3 filhas bebés e vivendo com o seu namorado da escola secundária, pai das suas filhas  – mas não era casada, o que viria a revelar-se um aspecto importante para que dela formassem “opinião”, essa ferramenta tão crucial em todos os casos que envolvem sexualidade.
 O juiz acabou por, mais tarde, afirmar que estava arrependido em relação ao modo como lidou com o caso, já que nunca devia ter permitido que o nome de Cheryl fosse conhecido nem que as sessões de Tribunal fossem transmitidas. Visto que não atribuiu a Cheryl o direito da protecção da identidade da vítima, esta acabou por ser conhecida em todo o lado e – como, aliás, também é de uso e de abuso nestes casos – tornou-se habitual falar no nome da vítima ao invés de gritar bem alto o nome dos criminosos. Além disso, em vez de questionar a motivação dos criminosos ou os seus antecedentes, foi a vida de Cheryl que foi passada a pente fino.
Contrariamente à história do argumento do filme, Cheryl não tinha ido a um bar divertir-se, e muito menos tinha dançado de forma provocadora como a personagem de Jodie Foster (embora nenhuma dessas situações justificasse violação, porque nenhuma atitude justifica violação). Cheryl tinha saído de casa depois da festa de aniversário em que a sua filha mais velha completara 3 anos, para ir comprar cigarros. O estabelecimento onde os costumava comprar estava fechado e ela dirigiu-se ao Big Dan, local onde nunca tinha entrado, para efectuar a compra. À saída, foi interpelada por dois homens que a “convidaram” para sair do bar com eles, o que ela recusou. Acto contínuo, foi agarrada pelos cabelos por um e pelos braços por outro, e arrastada para a parte de trás do bar até uma mesa de bilhar, onde foi violada por esses homens e por outros. As violações foram sucessivas e mais duras, se possível, do que no filme: Cheryl era agarrada por alguns, penetrada por outros, forçada a sexo oral por outros, enquanto outros homens incitavam. Foi testemunhado que dois homens (entre os quais o barman e dono do estabelecimento, que nem inglês falava e testemunhou em português no julgamento) tentaram intervir, mas foram barrados pelos tais coadjuvantes. Foram também ameaçados e, por medo, não chamaram a polícia. É curioso verificar, no entanto, que num bar cheio de gente, apenas Carlos Machado (o barman) e um cliente, Valdimiro Pacheco, tiveram o pensamento – ainda que frustrado – de parar uma gang rape. O resto do pessoal, mesmo que não violando Cheryl, sentia-se bem observando a prática. Devia ser, mutatis mutandis, como ver um filme pornográfico sádico.
defesa dos violadores e seus comparsas transformou esta história num filme de perguntas insidiosamente bizarras (à falta de melhor adjectivo): Que jovem mãe era esta que tinha saído de casa, à noite, deixando as filhas com o companheiro/pai das meninas para ir, viciosamente, comprar cigarros? Não sabia ela em que tipo de estabelecimento estava a entrar, local onde, habitualmente, não entravam mulheres “de respeito”? Teria ela realmente dito a um dos alegados violadores que ele “era giro” (como o próprio testemunhou) – frase que, como sabemos, faz logo saltar um magma testicular que depois não pode conter-se? Não teria ela bebido demasiado nessa noite? Como podia ela (de facto, o Ministério Público e não ela, mas enfim…) afirmar que as violações teriam durado entre 90 minutos a duas horas se os homens relatavam não mais que 35 minutos de sexo? Como pode ela afirmar q foi violada em cima da mesa de bilhar quando as restantes testemunhas afirmaram que primeiro ela foi violada no chão e só depois em cima da dita mesa? “Não nos parece que uma mulher esqueça assim o sítio exacto onde foi violada!” A vítima ficou quinze horas a responder a seis advogados de defesa, cujos comentários e opiniões – como é habitual – se seguiam às perguntas.
Importante foram também outros testemunhos, como referi. Se é verdade que os testemunhos de Carlos Machado e Valdimiro Pacheco foram determinantes para a condenação dos violadores (como é triste pensar que foi necessário chegar a isso!) , também é verdade que o testemunho de Adrian Medeiros, polícia, foi determinante para descredibilizar a vítima, ao afirmar que ela “não conseguiu identificar, a posteriori, dois dos seis atacantes na própria noite do ataque” (quando o agente a levou ao bar novamente, na mesma noite, para que Cheryl apontasse quem a violara!). Não ocorreu que Cheryl estaria em estado de choque. Não ocorreu que seria uma segunda tortura colocá-la frente aos violadores, no local da violação, poucas horas depois. Não ocorreu, sequer, ao insensato polícia que podiam já não estar todos no bar. Ocorreu que ela não os identificou a todos e que, logo, era uma mulher incoerente. Brilhante e muito científico.
Cheryl tinha sido educada na comunidade portuguesa, aliás na comunidade açoriana, da cidade de New Bedford, à qual também pertenciam todos os violadores e demais envolvidos neste caso. New Bedford é uma cidade americana para onde, tradicionalmente, emigram açorianos (vá lá, portugueses –  este regionalismo agora seria abrir outra conversa) desde o século XIX. Como este caso provou, pode perfeitamente viver-se e trabalhar por lá sem tão pouco falar inglês, numa mini transplantação que não pretendo sequer aqui analisar com a profundidade e as questões étnico-raciais que já outros fizeram, com justa causa, porque este artigo tem outro fim. No entanto, como dizia Vitorino Nemésio “a geografia vale outro tanto como a história”. Quanta ressonância e verdade nesta frase!
Até agora, ainda não nomeei os criminosos.: Victor Raposo, John Cordeiro, Joseph Vieira e Daniel Silva (acusados de violação agravada); Virgílio Medeiros e José Medeiros, sem conexão familiar entre os dois (acusados de coadjuvação de crime, i.e. de terem encorajado o crime). As acusações foram julgadas em separado e resultaram em sentenças diversas, até porque cada juiz sua sentença: os primeiros quatro foram condenados e os outros dois foram absolvidos. Também aqui a história real é substancialmente diferente do filme, pois que no filme os violadores são absolvidos devido a um acordo feito pela advogada da vítima (contra a vontade de Sarah Tobias, que não tem uma relação fácil com a sua advogada) mas a multidão que incita o crime é condenada.
É importante ressalvar que o máximo de pena que um destes violadores cumpriu foram seis anos e meio (apesar da condenação ser de 12 anos), tendo todos os restantes cumprido penas menores.
A maneira como os jornais – e imprensa em geral – retrataram o caso foi tão instigadora de uma versão anti-vítima que, dez anos depois, ainda havia quem escrevesse academicamente sobre isso. A princípio, o nome da vítima foi ocultado, sendo o caso tratado como uma violação “regular”. Mas assim que o nome dos envolvidos foi conhecido, vieram as descrições. Cheryl foi descrita como sendo uma mulher de costumes soltos, promíscua, de linguagem violenta e agressiva, com vícios vários, provocadora. Tudo se concentrou em descobrir quem era esta mulher sobre quem a atenção de um bar inteiro tinha caído. Que feitiço carregaria?
No início, as associações de mulheres contra a violência podiam ser vistas fora do Tribunal a apoiar Cheryl: há relatos do Boston Herald sobre 12 destas associações empunhando cartazes em sua defesa quando o julgamento começou. Eram cerca de 2000 a 4000 pessoas. Um ano depois, o dobro de seres humanos (8000 pessoas) fez uma vigília em frente ao mesmo Tribunal para protestar contra a condenação dos violadores, com cartazes, velas e símbolos em que se via a Justiça crucificada. Destas pessoas, a esmagadora maioria eram portugueses ou luso-portugueses e grande parte eram mulheres. É disto mesmo que trata outro espantoso artigo académico de 1987: The Before and After of a Group Rape. , na tentativa de explicar o porquê de alguém da mesma cultura, do mesmo sexo, se virar tão brutalmente contra outrem tão igual a si que acaba de sofrer um crime hediondo.
Voltemos à geografia, que não podemos esquecer. Os lugares pequenos (e a pequenez e circularidade das relações que ali se mantem) são determinantes para a sobrevivência das comunidades. Nesta cidade, a primeira reacção foi de choque (p.245) e nisto não diferiram os homens das mulheres, ambos os sexos reagindo com maior ou menor agressividade contra os agressores. Mas o sentimento foi breve. Pouco a pouco, a hostilidade relativamente aos agressores transformou-se em hostilidade contra a vítima, por razões várias: ela não era tradicional (um pecado nunca perdoado!), e tinha posto a nu um assunto que devia ter ficado esquecido. De facto, quanto mais a Media falava em “Portuguese rapists”, mais a comunidade portuguesa se indignava e tomava como insulto o adjectivo nacional. Ademais, os violadores tiveram intérpretes no julgamento enquanto que a vítima sabia falar inglês. Pouco a pouco, a comunidade portuguesa se identificava com os criminosos e lamentava-os. Depois, havia as mulheres ligadas aos próprios, por ex. Carol Maciel, namorada de um dos violadores desde a adolescência, que despertava simpatia por o defender sempre; e ainda a doença cardíaca de outro deles. Enfim, os próprios jornais portugueses que, em manchetes, se interrogavam se “teria havido tão grande onda de indignação se esta violação ocorresse noutra comunidade étnica que não a comunidadetrabalhadora portuguesa?” (p.250).
Quando finalmente os criminosos foram condenados, já os portugueses em geral e as mulheres em particular, pediam a cabeça desta vítima “sem a qual nada disto se teria passado” (p.248). Os comentários falam por si (p.251) – Alda Machado de Fall River “Os direitos dela eram estar em casa. Uma mulher portuguesa fica em casa com seus filhos.” Ann Botelho “Porque é que apenas eles foram condenados? Se ela foi violada, ela é que os instigou!” Virginia Faria de New Bedford “Sou portuguesa e mulher, mas não sou violada. Se atiras um osso a um cão, ele vai mordê-lo, entendes?”
Resta dizer que, depois do julgamento, não apenas Cheryl e família nuclear mas também a sua irmã e sobrinho viram-se forçados a abandonar o estado de Massachussets e a ir viver para Miami, na Florida, porque não eram bem vindos. Isso foi-lhes muito claramente mostrado. A sua sentença foi o exílio (p. 252)
Como explicar tal hostilidade? Segundo Chancer, era mais fácil paras as mulheres portuguesas aderirem à lealdade étnica do que à de género, pois admitir os contornos reais da situação era acabar com o seu próprio mundo tal como ele estava construído. Ou seja, a esmagadora maioria das mulheres (quer) acredita (r ) que, se fizer um bom papel como namorada, esposa, mãe, está livre de malfeitorias masculinas. Essas desgraças só acontecem a mulheres que se prestam a isso. Menos ainda podem conceber que homens que elas, mulheres, conhecem e com quem privam façam isso a mulheres de bem. Que façam, ainda vá que não vá. Mas só a “putas”, essa raça de fêmeas que são como infeciosos micróbios que entram no encéfalo masculino, ficando os homens acometidos de febres que lhes tiram todo o racional por 90 minutos (ou 35, no dizer da defesa). Seriamente falando: as mulheres reconhecem a vulnerabilidade das restantes, que é também a sua, mas imaginam que, distanciando-se delas, por virtude de as maldizer ou incriminar, ficam a salvo. É um raciocínio infantil, feito de deslealdade e de instinto de sobrevivência.
Que podemos dizer, em pleno 2019, 36 anos passados sobre este caso? Pouco mudou sobre a forma como se tratam, durante e depois de um caso de violação, os perpetradores e as vítimas. Victim blaming (expressão que, naquela época, ainda não estava catalogada como tal) continua a ser uma realidade, talvez mais do que nunca. Os governos, cá, lá e acolá, ainda não se convenceram a fazer programas de apoio à recuperação de vítimas de violação. Existem organizações como esta, a maior organização de apoio a vítimas de violência sexual nos EUA, mas só há 25 anos dá apoio a sobreviventes e convenhamos que muito por força impositiva das novas ideologias de género, ditas LGBTQI, que pediam apoio neste sector em particular. Em Portugal, há dois gabinetes recentes.
Por outro lado, em Portugal, não há falta de vontade pública nem governamental (tabela 20: programa para agressores sexuais em meio prisional), nem política e nem académicaem fazer programas de apoio a violadores, denominados programas de recuperação ou de (re)inserção. De facto, até existem em Portugal programas governamentais piloto desde 2009 (ironicamente, e ainda relembrando este caso, nos Açores!) que “recupera” agressores e um desde 2012 para abusadores sexuais de crianças e jovens, que afirma mesmo que consegue modificar “a empatia destes com a vítima”.
Será que, tal como no caso de Cheryl, a ninguém ocorreu uma epifania? São as vítimas que necessitam exactamente destas mágicas palavras: recuperação e (re)inserção. “Recuperação” de um trauma pois são elas que sofreram (sofrer do latim sufferre, isto é: quem está sob ferros, submetido, forçado a …); os violadores não foram submetidos a nada! “Reinserção” numa sociedade que, como vimos, não entende que ser vítima de violação não é ter “andado a pedi-las” e que as ostraciza ou mesmo as força ao exílio, como este triste caso de Cheryl Araújo bem demonstra.
Claro que, por trás de tudo isto, está algo que se chama dinheiro. Se o sexo é uma indústria, a verdade é que uma vítima de violência sexual é sempre vulnerável e não pode pagar a sua recuperação. Eventualmente, a rede do criminoso pode, até porque muitos criminosos são gente da alta. É isto mesmo que o sistema descobriu, porque os sistemas jamais são construídos por gente vulnerável. Assim, um (pobre) homem condenado poderá ter um vício por sexo ou por um determinado tipo de sexo, uma parafilia, uma doença, enfim… Algo passível de tratamento, e como o cancro ou a malária, de recuperação. É chocante a última frase? Pois é, sobretudo para quem realmente tem uma doença. Chocante é também a realidade que se vive, de re-traumatizar uma violação até à exaustão, vitimizando os criminosos ao fazer deles uns doentinhos e transformando as vítimas numas galdérias provocadoras, quais vírus que se meteram insidiosamente nos encéfalos desprevenidos dos pobres meliantes.
Infelizmente, Cheryl Araújo faleceu muito jovem, com 25 anos, em Miami, antes do filme com Jodie Foster ver a luz do dia. Morreu num trágico acidente de carro, quando a viatura que conduzia se despistou e bateu contra um poste. A notícia é curta, diz que duas filhas suas iam no carro mas sobreviveram. Cheryl continuava a ser uma jovem simples, vivia com a sua família de sempre e, contrariando tudo, era uma pessoa muito positiva. Em Janeiro deste ano, foi publicado um livro com testemunhos e fotografias inéditas do seu caso, tão tristemente célebre.
Cheryl Araújo mudaria o curso da história das violações nos tribunais e na imprensa: a primeira vítima de violação a ser filmada em Tribunal, a primeira cujo nome foi publicamente revelado, a primeira a ser “condenada” por uma nação, mas não a primeira a ser ostracizada por outras mulheres próximas de si em particular e pela sua comunidade em geral. Gostaria de a ter conhecido para lhe dizer que “dealing with what life gave her” é só para heroínas.


Thursday, June 20, 2019

Meninos à Venda... Mas com Glamour



Há dias recebi uma petição de protesto contra uma notícia do Diário de Notícias que saiu na última semana de Maio e que se intitulava “Crianças para adopção desfilam em passerelle para eventuais interessados”.

O evento era isto: crianças e jovens, entre os 4 e os 17 anos, a desfilarem numa passerelle, maquilhados, bem vestidos, à moda, para que o público interessado no “produto humano” se manifestasse e os adoptasse. O desfile aconteceu em Mato Grosso e foi organizado pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Já vai na terceira edição mas só este ano é que choveram as críticas, pelo menos internacionalmente, acusando o evento do que realmente é: espécie de cruel feira de gado humana, mercantilização perversa de crianças. Note-se que, tendo em atenção quem são os organizadores, o evento não podia estar mais dentro da legalidade! Isto não impede que a ética do mesmo seja inteiramente discutível.

Acontece que a “adopção” de crianças por meio de espectáculos de moda a pretendentes que as avaliam não é exclusiva do Brasil que, aliás, se limitou a copiar a ideia dos Estados Unidos, onde a prática já existe há muito. Um documentário feito em 2011, denominado Catwalk Kids, já registava esta prática como comum há vários anos nos E.U.A. (desde os tempos de Bill Clinton, pelo menos).
O documentário demonstra uns E.U.A. orgulhosos desse seu “marketing das crianças que estão em foster care ou ao cuidado do Estado” e que, caso contrário, nunca de lá sairiam e críticos “desses países que não fazem nada para que mais crianças sejam adoptadas.” Não traz nada de novo ao dizer que quanto mais velha uma criança mais difícil é de ser reintegrada numa família, e que se existirem irmãos mais complexa se torna a realidade da adopção.

O documentário é chocante, porque vemos crianças pequenas a tentarem vender-se, literalmente, ao desfilarem demonstrando toda a sua estrutura corporal na passerelle. Já para não falar dos adolescentes, quase desesperados, cuja forma de vestir e desempenho ao qual são obrigados no evento quase nos faz duvidar de qual vai ser o seu real papel e função nas famílias para onde vão viver.

Em qualquer país do mundo, as crianças são um negócio há muitos anos. Basta ler os artigos de David Akynsaya no inglês The Guardian, um (hoje) mediático que teve a sorte de sobreviver ao sistema do Estado para crianças-vulneráveis (ou crianças-problema, depende da denominação em voga),que põe a nu a realidade de um passado onde “sobreviver” é realmente um feito. São perguntas inquietantes: “se se retiram as crianças a pais inadequados, o objectivo seria dar-lhes cuidadores adequados. Então, porque é que isso não costuma acontecer?”

Quanto aos desfiles de “moda” para estratégica adopção: que efeito têm nas crianças – as tais cujo “superior interesse” está em causa? Que aprenderá uma criança que foi a) abandonada, b) retirada a uma família ou c) já anteriormente maltratada pelos pais quando lhe dizem “Agora vamos maquilhar-te e pôr-te esta roupinha e vais andar de forma dançante perante um grupo de avaliadores. Se algum te achar suficientemente interessante, leva-te para casa. Passas a ser o filho dessa família. Vê lá se fazes um bom trabalho.”

Sendo escolhidas, na melhor das hipóteses (?), nunca terão liberdade para serem crianças, jovens e pessoas. Estarão sempre a fazer um papel, o papel de entretenimento perfeito, esse papel de teatro-diversão para o qual foram adquiridas por estes (agora) pais. Já para não falar das que, não sendo escolhidas, se culpam pela sua falta de “qualidade”.

As verdadeiras perguntas são: que espécie de pais escolhem um filho de entre um desfile de crianças para encher a boca (ou as redes sociais) com o amor incondicional da paternidade/maternidade? Que espécie de leis temos onde esta situação é organizada pelos próprios actores legais? Não menos importante: que sociedade temos, que apenas entra na moda de protestar contra o Brasil e os E.U.A. em relação a esta prática, quando decide que não gosta do Bolsonaro e do Trump, líderes completamente alheios a estas decisões  que já há tanto tempo estão em voga?

Thursday, June 6, 2019

O Absurdo Caso do Esperma Congelado



Peter Zhu, um cadete da Academia Militar de West Point, nos E.U.A., sofreu um acidente de esqui há 3 meses atrás que o deixou com a coluna severamente fraturada. Cinco dias depois, foi pronunciada a sua morte cerebral. O jovem de 21 anos foi mantido vivo ainda durante dois dias mais, altura em que os seus pais obtiveram uma ordem do Tribunal para preservar o esperma do jovem, a fim de “obter descendência a partir deste”. A ordem acaba de ser confirmada na passada semana.

No seu pedido, os pais de Peter Zhu alegaram várias coisas.

A primeira foram as excelentes qualidades do filho, razões pelas quais “queriam preservar o seu material reprodutivo e genético.” Este motivo, que pareceu ao decisor retratar uns pais elogiosos do seu filho, parece-me a mim assustadoramente hitleriano, na onda da preservação da raça. Além de que, no elogio feito ao filho, nada mais encontro do que a extensão de um elogio aos próprios – pois o material genético do filho é o dos pais, aqui pretensos futuros avós.  

Alegaram, também, que o filho, “generoso e humanitário”, era um dador de órgãos consignado, razão pela qual, se iam retirar-lhe os órgãos para serem doados a outras pessoas, sentiam que seria igualmente possível e dentro da mesma bitola avaliativa legal, ser-lhe retirado o esperma (obviamente antes dos órgãos) e ser este entregue aos pais, para que estes pudessem utilizá-lo para fins reprodutivos. Ora, também com isto não concordo por não me parecer o mesmo, pois se Peter Zhu assinou um papel concordando em ser dador de órgãos, isso não é o mesmo que ser dador de esperma, nem daí se pode concluir a sua anuência em tal. Aliás, incorre-se aqui num erro de forma e de matéria, pois que o esperma não é um órgão. Seria necessário que Peter Zhu tivesse incluído na doação post mortem esta cláusula específica, a doação de fluídos reprodutivos – o que, aliás, nem sei se é possível, de tal forma me parece absurdo.

Finalmente, os pais de Peter alegaram que tinham a certeza de que o “desejo de Peter seria ter filhos, desejo esse que não lhe foi possível realizar […] pelo que tendo perdido o nosso precioso filho, rogamos ao Tribunal a possibilidade de preservar uma parte dele numa criança que venha a existir.” Claro que a dor de perder um filho é inconcebível para a generalidade dos pais e não se pode julgar a forma como cada um reage a essa dor. Mas outra coisa, bem diferente deste quadro, são as últimas linhas que aqui transcrevi, com as quais me arrepiei. Passando por cima do facto de ser impossível saber os desejos de Peter quanto à paternidade (estava cerebralmente morto e não deixou nada escrito neste sentido), é assustador a admissão de que a razão pela qual querem um neto é para ver Peter vivo outra vez, descobrir Peter noutra criança, enfim ter Peter de novo. O futuro neto (cuja mãe será, provavelmente, apenas um “vaso reprodutivo”) não passará de um espelho do filho perdido, não indivíduo por direito, servindo para compensar a solidão destes avós. Um fardo muito pesado e muito injusto para uma nova vida.

Ficam-me, ainda, outras interrogações éticas sobre este pedido tão rapidamente autorizado pelo Juiz Colangelo. Nesta época em que a sociedade despertou para a noção de “consentimento” nos atos sexuais e tendo em conta que profanar um corpo morto é crime, como se encara a manipulação masculina para obter esperma, tendo em conta que Peter Zhu nunca expressou o seu consentimento? Quanto a mim, não é claro seja lícito, pois mesmo a doação de órgãos (e insisto que esperma não é órgão) tem de ser autorizada pelo próprio, expressamente e em vida.

Para já, os futuros avós congelaram o esperma e ainda não revelaram o que se segue, visto que a ordem do Tribunal os autoriza a ficar com o esperma mas não os obriga a nenhum tipo de utilização consequente. Abriu-se uma caixa de Pandora, cujas respostas éticas não são claras e levantam muito desgosto.