Há dias recebi uma petição de
protesto contra uma notícia do Diário de Notícias que saiu na última semana de
Maio e que se intitulava “Crianças para adopção desfilam em passerelle para
eventuais interessados”.
O evento era isto: crianças e
jovens, entre os 4 e os 17 anos, a desfilarem numa passerelle, maquilhados, bem
vestidos, à moda, para que o público interessado no “produto humano” se
manifestasse e os adoptasse. O desfile aconteceu em Mato Grosso e foi organizado
pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Já vai na terceira edição mas só
este ano é que choveram as críticas, pelo menos internacionalmente, acusando o
evento do que realmente é: espécie de cruel feira de gado humana,
mercantilização perversa de crianças. Note-se que, tendo em atenção quem são os
organizadores, o evento não podia estar mais dentro da legalidade! Isto não
impede que a ética do mesmo seja inteiramente discutível.
Acontece que a “adopção” de
crianças por meio de espectáculos de moda a pretendentes que as avaliam não é
exclusiva do Brasil que, aliás, se limitou a copiar a ideia dos Estados Unidos,
onde a prática já existe há muito. Um documentário feito em 2011, denominado
Catwalk Kids, já registava esta prática como comum há vários anos nos E.U.A. (desde
os tempos de Bill Clinton, pelo menos).
O documentário demonstra uns E.U.A.
orgulhosos desse seu “marketing das crianças que estão em foster care ou ao cuidado do Estado” e que, caso contrário, nunca
de lá sairiam e críticos “desses países que não fazem nada para que mais
crianças sejam adoptadas.” Não traz nada de novo ao dizer que quanto mais velha
uma criança mais difícil é de ser reintegrada numa família, e que se existirem
irmãos mais complexa se torna a realidade da adopção.
O documentário é chocante, porque
vemos crianças pequenas a tentarem vender-se, literalmente, ao desfilarem
demonstrando toda a sua estrutura corporal na passerelle. Já para não falar dos
adolescentes, quase desesperados, cuja forma de vestir e desempenho ao qual são
obrigados no evento quase nos faz duvidar de qual vai ser o seu real papel e
função nas famílias para onde vão viver.
Em qualquer país do mundo, as
crianças são um negócio há muitos anos. Basta ler os artigos de David Akynsaya
no inglês The Guardian, um (hoje) mediático
que teve a sorte de sobreviver ao sistema do Estado para crianças-vulneráveis
(ou crianças-problema, depende da denominação em voga),que põe a nu a realidade
de um passado onde “sobreviver” é realmente um feito. São perguntas
inquietantes: “se se retiram as crianças a pais inadequados, o objectivo seria
dar-lhes cuidadores adequados. Então, porque é que isso não costuma acontecer?”
Quanto aos desfiles de “moda”
para estratégica adopção: que efeito têm nas crianças – as tais cujo “superior
interesse” está em causa? Que aprenderá uma criança que foi a) abandonada, b)
retirada a uma família ou c) já anteriormente maltratada pelos pais quando lhe
dizem “Agora vamos maquilhar-te e pôr-te esta roupinha e vais andar de forma
dançante perante um grupo de avaliadores. Se algum te achar suficientemente
interessante, leva-te para casa. Passas a ser o filho dessa família. Vê lá se
fazes um bom trabalho.”
Sendo escolhidas, na melhor das
hipóteses (?), nunca terão liberdade para serem crianças, jovens e pessoas.
Estarão sempre a fazer um papel, o papel de entretenimento perfeito, esse papel
de teatro-diversão para o qual foram adquiridas por estes (agora) pais. Já para
não falar das que, não sendo escolhidas, se culpam pela sua falta de
“qualidade”.
As verdadeiras perguntas são: que
espécie de pais escolhem um filho de entre um desfile de crianças para encher a
boca (ou as redes sociais) com o amor incondicional da paternidade/maternidade?
Que espécie de leis temos onde esta situação é organizada pelos próprios
actores legais? Não menos importante: que sociedade temos, que apenas entra na
moda de protestar contra o Brasil e os E.U.A. em relação a esta prática, quando
decide que não gosta do Bolsonaro e do Trump, líderes completamente alheios a
estas decisões que já há tanto tempo estão
em voga?