... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, September 24, 2020

Não me toques

 Até há pouco tempo, as pessoas “não me toques” eram escarnecidas e vistas como arrogantes, presumidas e afectadas. As crianças – esses génios da sinceridade trocista – faziam um verdadeiro pagode daqueles que, na escola, fugiam ao toque dos demais e apelidavam-nos com toda a sorte de nomes, bem pouco simpáticos. Os preocupados professores do ensino elementar chamavam a atenção dos pais dessas crianças anti-sociais, prevendo-lhes futuros funestos de solidão e problemas mentais embrionários.

Hoje, por força das circunstâncias, não só toda a gente adoptou o slogan de fuga ao toque, como somos mesmo forçados pelas autoridades a manter espaços de segurança de toda a gente, máscaras de protecção e até mesmo usar sprays e géis desinfectantes para quando acontece um contacto. Hoje, ser sociável não é apenas visto como loucura. É mesmo contra a lei.

O papel dos governos e dos media nesta revolução quase instantânea de posicionamento não tem muito que se lhe diga: tem tudo. Já começamos a discutir se o problema é o Covid 19 ou a atitude perante o mesmo, como diz Yuval Noah Harari que cedo alertou para a importância do bom senso na resposta a uma crise na esperança de que não deixássemos que a privacidade e a falta de liberdade fossem invadidas em nome da fiscalização ditatorial. O mesmo Yuval Noah Harari que é endeusado pelas suas obras sobre evolução da Humanidade é um homem que agora todos calam quando fala no estádio actual que o ser humano atravessa.

Entretanto, e porque o ser humano é natural e biologicamente gregário lá vai arranjando formas de ser social e afectuoso como pode, dentro das limitações contextuais. Nesta nova forma de relacionamento(s), a internet adquiriu grande importância – outros dirão que se a internet não existisse não poderia haver o tal controlo em grande escala, mas há sempre um reverso da medalha em tudo e, de qualquer forma, jamais se pode deter o progresso. A única coisa inevitável é a mudança; o que fazemos dela é connosco (isto dava outra crónica!). Nesta onda do afecto à distância, conhecer pessoas torna-se uma tarefa só recomendável com ecrã pelo meio. Conclusão: namorar passou a ser mais frio e distante e menos propício a beijos e amassos do que nos tempos em que a minha avó namorava à janela.

As pessoas solteiras (ou sozinhas) que antes encontravam parceiros em contextos forçosamente sociais, como sejam as pausas no trabalho, ginásios, cafés, bares, concertos, viagens, enfim, hoje estão quase impedidas destas situações (ou, pelo menos, controladas: não há muito romantismo em certos cenários destes usando uma máscara). Poderá acontecer esbarrar com alguém no supermercado ou ter um coup de foudre com o carteiro, mas é preciso uma grande sorte – e um carteiro excepcional. Portanto, a esmagadora maioria dos solitários agora opta por relações através da internet.

Se é verdade que existem aplicativos unicamente para encontrar parceiro (como o Tinder e outros que dependem até das escolhas sexuais de cada um), a verdade é que muita gente encontra parceiro em outros sites online que se parecem menos com uma lista de compras com humanos à disposição. Existem versões ainda mais estranhas, como o “Meet Me”, onde os pretendentes se dispõem a conhecer outro alguém em frente a uma plateia online que avalia se o primeiro encontro virtual deles está a correr bem – exibicionismo? Mistura entre relações pessoais e pressão social de gente que nem se conhece?

Há um sketch muito engraçado dos humoristas brasileiros “Porta dos Fundos” em que eles explicam que todo o aplicativo da internet não passa de uma forma de “engatar”, mesmo que seja um aplicativo para pedir comida. Para além disso, muitos há que conhecem pessoas através de jogos online (“gaming” é outra forma de conhecer gente… e não é pouco concorrida) ou então em fóruns do estilo Reddit, um caldeirão onde cabe tudo o que se possa imaginar, espécie de mercearia do Sr. João que vende pastilhas elásticas, arroz, meias, remédios e lápis. Mas com ar moderno.

É possível encontrar um parceiro na internet? É. É possível encontrar companhia em todo o lado. É possível ser ludibriado por alguém na internet? É, não faltam mentirosos. Além disso, é fácil deixarmo-nos levar pela imaginação e cairmos na ilusão do que gostaríamos que algo fosse, muito mais acentuada quando nunca vimos realmente esse algo, nunca tivemos oportunidade de verificar que cheira a suor e que tem hálito de cebola quando come hambúrguer completo. A minha opinião pessoal é que estou grata por não ter de passar por esse martírio internauta. Só espero que, na geração dos meus filhos, as pessoas possam dar uns valentes beijos à vontade.