... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, December 31, 2020

A moda e a pandemia

Este foi um ano como nenhum outro. Fronteiras fechadas, aviões parados, limites nas estradas, concelhos e cidades. Abraços proibidos, beijos nem pensar e apertos de mão só de luva, máscaras a tapar o rosto de todos neste mundo, tornando completamente obsoleto o debate que ainda há pouco tínhamos sobre se era adequado, digno ou civilizado tapar a cara com burka. Prateleiras de supermercado vazias e faltas de papel higiénico – esse bem essencial, que nos recordou certo regresso ao minimalismo quanto ao que realmente importa neste mundo. Proibição de ajuntamentos de pessoas e mesmo de receber pessoas em casa ou de ir visitar os familiares. Escolas fechadas. Escritórios sem ninguém, e tudo a trabalhar à distância. Pessoas com medo de espirrar, não fosse alguém pensar que sofrem da “doença”. Outras sofrendo, mas da mente, porque a falta de liberdade e o confinamento não combinam com certos temperamentos livres.

Algumas indústrias sofreram muito este ano devido à pandemia, nomeadamente o turismo e a educação superior, com turistas e alunos a desistirem de embarcar em mais uma viagem ou curso. Não confundir aqui turistas com alunos. A minha frase, gramaticalmente ambígua, não pretende equiparar uns e outros, embora haja alunos que turistem pela Universidade tal como há turistas que aprendem muito nas viagens.

Outra indústria que sofreu muito com a Covid-19 foi o sector da moda. Quando a grande recomendação (ou mesmo lei!) é ficar fechado em casa, não há motivação para roupas, acessórios, cabeleireiro, unhas e maquilhagem. Por mais que digam que nós nos arranjamos para nos sentirmos bem connosco mesmos, todos sabemos que o olhar do outro tem grande peso quanto às escolhas que fazemos relativamente à nossa apresentação. Mesmo quem escolhe ser original e diferente, fá-lo com a intenção que prevê o olhar de alguém, porque é impossível ser “contra a maré” se não houver “maré” na sociedade que nos observa.

Com o advento da Covid, a sociedade passou a observar o individuo através do ecrã do computador e isso de moda(s) tornou-se um fogo-fátuo, observável da cintura para cima (e ainda assim apenas e só quando se liga a câmara). Já não se trata do “Prêt à Porter” mas sim do “Prêt à se détendre”, isto é, passamos do Pronto a Vestir ao Pronto a Relaxar. E já nem falo de subculturas como a Alta Costura (coitada!), ou a Streetwear (necessariamente morta e enterrada devido ao próprio nome). Apenas o minimalismo e o lounge wear imperam. É a moda do tipo que se levanta da cama e segue para o sofá onde mete o computador em cima dos joelhos, para no fim do dia se levantar do sofá e ir deitar-se na cama, ostentando sempre o mesmo pijama de flanela aos quadrados, mais sujinho à noite, com marcas de molho bolonhesa do esparguete de lata consumido em frente à TV.

Para quem sai de casa, existe a moda das máscaras decoradas -algo absolutamente contra-producente a nível de saúde. A máscara, que devia ser de usar e deitar fora, por razões mais do que óbvias, passa a ser de usar para olhar, admirar, cobiçar, invejar. Nem o vírus resiste a tocar-lhe, tao bonita que é.

Para quem tem reuniões de trabalho e aulas online, é imprescindível aparecer vestido com certo primor da cintura para cima. Mas não muito porque demasiado dá ar de quem vai sair e eventualmente fazer algo ilegal como sair dos limites do concelho. Da cintura para baixo, o normal é estar de cuecas velhas e de pantufas, secretamente gozando o prazer de estar tão desleixado em frente ao patrão ou ao professor (que goza do mesmo secreto gosto, enfim, um prazer não declarado que a todos une na mesma conversa online). Junta-se aquela canecazinha de chá ou de café sempre ali ao lado, para além do desinfetante com álcool porque nunca se sabe…

Há ainda outro momento extremamente deprimente que são os encontros amorosos virtuais, onde já ninguém tem paciência para as lingeries e o look acaba mesmo por ser aquela t-shirt branca velha, com que se dorme e se limpa a casa no dia a seguir.

Maquilhagem é coisa que já não se usa. Não é necessária, quando estão disponíveis tantos filtros nas apps virtuais, filtros que fazem a cara mais olheirada e descompensada tornar-se uma estrela de Hollywood em três segundos.

Esta moda Covidwear convida ainda todos a experimentar o plus-size porque comemos mas não nos mexemos o suficiente.

Enfim, um ano deprimente para a moda. Quem não é visto não é apreciado.

 

Friday, December 18, 2020

O azar de Ihor Homeniuk

Portugal está escandalizado com o assassinato de Ihor Homeniuk. De repente, o cidadão comum acordou para algumas realidades que o Zé Povo não gosta de admitir porque são o oposto dos arquétipos que passamos a vida a repetir: não somos de brandos costumes, e nem tão pouco deixámos para trás modos de agir que vêm desde os tempos da Ditadura, que jamais caíram e antes continuam a fazer parte do modus operandi das instituições governamentais e judiciais, instituições essas que se protegem entre si e bem assim aos seus membros.

Não reconstituo aqui a história, que qualquer um pode pesquisar. Apenas levanto algumas pendências que ficaram a tinir-me nos ouvidos.

1.O cidadão chega a Lisboa com visto de turismo. Não conseguiu explicar onde ficaria. Os inspectores do SEF suspeitaram de uma situação irregular (não está explícito, mas qualquer um percebe que suspeitaram que Ihor iria trabalhar ilegalmente sem visto para tal). Como tal, determinaram que Ihor ficasse detido no aeroporto até ter um vôo para a Turquia. Porém, é importante ressalvar que Ihor tinha um visto de turismo. Um ucraniano pode ficar em Portugal 90 dias com este tipo de visto. É necessário que os inspectores expliquem que fortes suspeitas os levaram a recusar a um turista (para todos os efeitos, um turista) a entrada em Portugal. Em boa letra de lei, há que assumir: foi assassinado um turista no centro de detenção do aeroporto por três inspectores. Não aconteceu a um inspector enraivecer-se; estavam ali três homens de autoridade em acção conjunta e continuada. A vítima não se tratava de um homem sem documentos ou sem permissão de entrada. Foi assassinado um turista por três agentes.

2.Diz a lei que o cidadão estrangeiro que enfrenta problemas judiciais ou de fronteira tem direito a um intérprete da sua língua, intérprete esse que deve ser um indivíduo imparcial. Eu mesma já fui intérprete em casos do género– trata-se de um serviço e não de “vem aqui dar uma ajuda”. Quem lida com os serviços de fronteira em Portugal - e no resto do mundo - sabe que há pouca flexibilidade linguística. Quantas vezes já vi darem grandes sermões a um estrangeiro em português quando o dito indivíduo nem “bom dia” sabe dizer. Do mesmo modo, noutros países, eu própria também já recebi grandes sermões noutras línguas depois de explicar que não sei falar. Inútil. O oficial de fronteira é um nacionalista do tempo da outra senhora e age de forma obsoleta. A “Europa sem fronteiras” ainda não lhe entrou no esquema, porque, para este oficial, “sem fronteiras” significa sem trabalho. No caso de Ihor, está noticiado que a “intérprete” foi uma inspectora do próprio SEF que fala russo. Ora, aqui há dois problemas: primeiro, obviamente que Ihor, sendo ucraniano, compreende e fala russo mas não era o seu idioma; segundo e mais importante, a intérprete nunca deveria ter sido uma inspectora do serviço que o interrogava, porque era “do lado do inimigo”, ou seja, a imparcialidade não existiu à partida. Mesmo que a dita senhora a tivesse, o interrogado deve ter-se sentido encurralado e não podia responder com autonomia.

3. As notícias dizem que Ihor foi espancado pelos inspectores e ficou a agonizar no centro de detenção durante horas. O centro de detenção é vigiado por seguranças que ali prestam serviço sendo pagos por uma empresa privada. Esta situação, por si só, é inenarrável pois que guardas privados não podem ter autoridade para presidir à vigilância e destino de detidos (que é o que são, na verdade, as pessoas que ficam fechadas ali pelo SEF). Assim, os guardas desta empresa  - que calhou estarem a vigiar o EECIT – decidiram não auxiliar Ihor, que agonizava, e até o manietaram o fita adesiva. Judicialmente, isto corresponde a quê? Colaboração criminal? Têm de ser responsabilizados. Por outro lado, fica a dúvida: em que qualidade podem estes indivíduos exercer as funções em que os colocaram ali, para seu azar?

4.Lendo o que até agora foi investigado sobre este crime, percebemos a história de sempre: o poder protege os poderosos. O relatório médico de “emergência” não diz a verdade e nem tão pouco a morte foi comunicada a tempo; o SEF encobriu o acontecimento, desde os “bons rapazes” até à sua direcção; a Inspecção Geral da Administração Interna fez o mesmo; o Ministro idem aspas; para que se começasse uma investigação foi necessária uma denúncia anónima, corroborada por um (finalmente corajoso) médico, que fez a autópsia do corpo. Ou seja, não fosse a comunicação social chocalhar e tudo dormiria o sono dos (in)justos.

No fundo, o governo português está cheio de sorte e Ihor teve muito azar nesta história. Porque se este cidadão não fosse ucraniano mas fosse russo, Portugal agora estava a roer as unhas e a borrar os fundilhos, porque teria de, diplomaticamente, dar conta a Vladimir Putin deste “acidente”. Talvez esta lamentável tragédia sirva para alguém abrir a pestana.

Thursday, December 3, 2020

Estoicismo Político

 Embora o Estoicismo seja uma filosofia e não uma ideologia política, muitos estóicos foram teorizadores políticos (Marco Aurélio, Cato, e até outros que, não sendo estóicos, tinham interesse no Estoicismo como Cícero). A parte central do Estoicismo tem a ver com o melhoramento do carácter do indivíduo. Talvez por isso uma tal filosofia não encontre grande eco na política hoje em dia. Porém, seria de grande utilidade. Basta lermos algumas das passagens dos nomes citados e pensar em como seria se a política actual as incorporasse.

Algumas virtudes são particularmente relevantes para os estóicos: a justiça – no sentido de atribuir a cada qual aquilo que merece; a coragem; a prudência e a moderação. Todas estas qualidades têm por objectivo atingir o “máximo da virtude” ou, em última análise, “o máximo de si mesmo”, já que o propósito do homem era ser o melhor de si. O homem que procura aperfeiçoar-se na sua melhor versão quer, certamente, também o melhor para os restantes seres ao seu redor, até porque “o que perturba a colmeia perturba a abelha” (Marco Aurélio). Esta interdependência é fundamental para que se entenda o summum bonum.

Não deve entender-se a colmeia apenas como a nossa rua, mas numa visão bem mais ampla da sociedade em que se insere o homem. Os estóicos são cosmopolitas, até porque acreditam que todos os seres humanos podem aceder ao Logos, isto é, à Razão universal que está de certo modo disponível a todos os que a procurem conhecer.

Dito assim, pode parecer que o estoicismo associado à política se reveste de academismo e pouca acção, mas nada está mais longe da verdade. O estoicismo não proclama a passividade, mas sim o movimento: “não expliques a tua filosofia; personifica-a” (Epicuro). Não é algo desenhado para sociedades que se imaginam perfeitas – um discurso que a política actual tornou “moda”, criando ElDorados tanto nos E.U.A. como na Canada do Vizinho-, mas sim para sociedades que necessitam de ser trabalhadas com vista a se tornarem melhores.

Para além disto, o estóico defende uma determinada postura pública que coloca as emoções de lado e que é mais uma característica que está a anos-luz do comportamento quase irracional, mesquinho e anti-diplomata da generalidade dos políticos actuais. Enfrentar o opositor, sem dúvida e sem receio, mas sempre com calma e racionalidade, rebatendo as suas ideias logicamente ao invés de entrar numa espiral de agressividade emocional e de frases sem sentido.

Escutar revela-se importante para poder rebater. Isto significar ouvir o que o outro disse ao invés de estar apenas a pensar em como vou esmagá-lo a seguir, atropelando a conversa sem sequer reparar que estou a contradizer(me) sem qualquer efeito racional, até porque “é melhor tropeçar com os pés do que com a língua” (Zeno). De igual modo, é de suma importância investigar as questões a fundo sem ficar agarrado a pré-julgamentos.

O estóico não é um ingénuo relativamente ao mundo, nem tão pouco quanto à política: “Viver parece-se mais com lutar do que com dançar. Espera ataques inesperados a todo o momento e prepara-te para a arte desse movimento.” (Marco Aurélio) O que o estóico defende, porém, é a própria arte dessa luta. Arte… e não uma batalha de lama.

Se os novos políticos não adoptarem uma postura diferente das antigas (direi, enraizadas) posturas, fica tudo na mesma. Faz lembrar aquela entrevista do fenomenal Jorge Jesus em que ele diz “É um grande jogador… grande não, é um big jogador… quero dizer… grande e big… acaba por ser a mesma coisa, não é?” É, Jorge. É.