Portugal está escandalizado com o assassinato de Ihor Homeniuk. De repente, o cidadão comum acordou para algumas realidades que o Zé Povo não gosta de admitir porque são o oposto dos arquétipos que passamos a vida a repetir: não somos de brandos costumes, e nem tão pouco deixámos para trás modos de agir que vêm desde os tempos da Ditadura, que jamais caíram e antes continuam a fazer parte do modus operandi das instituições governamentais e judiciais, instituições essas que se protegem entre si e bem assim aos seus membros.
Não reconstituo aqui a história, que qualquer um pode pesquisar. Apenas levanto
algumas pendências que ficaram a tinir-me nos ouvidos.
1.O cidadão chega a Lisboa com visto de turismo. Não conseguiu explicar
onde ficaria. Os inspectores do SEF suspeitaram de uma situação irregular (não
está explícito, mas qualquer um percebe que suspeitaram que Ihor iria trabalhar
ilegalmente sem visto para tal). Como tal, determinaram que Ihor ficasse detido
no aeroporto até ter um vôo para a Turquia. Porém, é importante ressalvar que
Ihor tinha um visto de turismo. Um ucraniano pode ficar em Portugal 90 dias com
este tipo de visto. É necessário que os inspectores expliquem que fortes
suspeitas os levaram a recusar a um turista (para todos os efeitos, um turista)
a entrada em Portugal. Em boa letra de lei, há que assumir: foi assassinado um
turista no centro de detenção do aeroporto por três inspectores. Não aconteceu
a um inspector enraivecer-se; estavam ali três homens de autoridade em acção
conjunta e continuada. A vítima não se tratava de um homem sem documentos ou
sem permissão de entrada. Foi assassinado um turista por três agentes.
2.Diz a lei que o cidadão estrangeiro que enfrenta problemas judiciais ou
de fronteira tem direito a um intérprete da sua língua, intérprete esse que
deve ser um indivíduo imparcial. Eu mesma já fui intérprete em casos do género–
trata-se de um serviço e não de “vem aqui dar uma ajuda”. Quem lida com os
serviços de fronteira em Portugal - e no resto do mundo - sabe que há pouca
flexibilidade linguística. Quantas vezes já vi darem grandes sermões a um
estrangeiro em português quando o dito indivíduo nem “bom dia” sabe dizer. Do
mesmo modo, noutros países, eu própria também já recebi grandes sermões noutras
línguas depois de explicar que não sei falar. Inútil. O oficial de fronteira é
um nacionalista do tempo da outra senhora e age de forma obsoleta. A “Europa
sem fronteiras” ainda não lhe entrou no esquema, porque, para este oficial, “sem
fronteiras” significa sem trabalho. No caso de Ihor, está noticiado que a
“intérprete” foi uma inspectora do próprio SEF que fala russo. Ora, aqui há
dois problemas: primeiro, obviamente que Ihor, sendo ucraniano, compreende e
fala russo mas não era o seu idioma; segundo e mais importante, a intérprete
nunca deveria ter sido uma inspectora do serviço que o interrogava, porque era
“do lado do inimigo”, ou seja, a imparcialidade não existiu à partida. Mesmo
que a dita senhora a tivesse, o interrogado deve ter-se sentido encurralado e
não podia responder com autonomia.
3. As notícias dizem que Ihor foi espancado pelos inspectores e ficou a
agonizar no centro de detenção durante horas. O centro de detenção é vigiado
por seguranças que ali prestam serviço sendo pagos por uma empresa privada.
Esta situação, por si só, é inenarrável pois que guardas privados não podem ter
autoridade para presidir à vigilância e destino de detidos (que é o que são, na
verdade, as pessoas que ficam fechadas ali pelo SEF). Assim, os guardas desta
empresa - que calhou estarem a vigiar o
EECIT – decidiram não auxiliar Ihor, que agonizava, e até o manietaram o fita
adesiva. Judicialmente, isto corresponde a quê? Colaboração criminal? Têm de
ser responsabilizados. Por outro lado, fica a dúvida: em que qualidade podem
estes indivíduos exercer as funções em que os colocaram ali, para seu azar?
4.Lendo o que até agora foi investigado sobre este crime, percebemos a
história de sempre: o poder protege os poderosos. O relatório médico de
“emergência” não diz a verdade e nem tão pouco a morte foi comunicada a tempo;
o SEF encobriu o acontecimento, desde os “bons rapazes” até à sua direcção; a
Inspecção Geral da Administração Interna fez o mesmo; o Ministro idem aspas; para
que se começasse uma investigação foi necessária uma denúncia anónima,
corroborada por um (finalmente corajoso) médico, que fez a autópsia do corpo. Ou
seja, não fosse a comunicação social chocalhar e tudo dormiria o sono dos
(in)justos.
No fundo, o governo português está cheio de sorte e Ihor teve muito azar
nesta história. Porque se este cidadão não fosse ucraniano mas fosse russo,
Portugal agora estava a roer as unhas e a borrar os fundilhos, porque teria de,
diplomaticamente, dar conta a Vladimir Putin deste “acidente”. Talvez esta
lamentável tragédia sirva para alguém abrir a pestana.