... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, January 29, 2021

A inveja, esse monstro silencioso

 Quem já leu “Otelo”, uma peça de William Shakespeare cujo enredo gira à volta de ciúme, conhece a frase em que a personagem Iago descreve o ciúme como “um monstro de olhos verdes”. Indo um pouco mais atrás na literatura inglesa até Chaucer, verificamos que era a inveja (e não o ciúme) que era associada ao verde na expressão “verde de inveja”. De facto, o ciúme e a inveja (em inglês “jealousy” e “envy”) são emoções que para os anglo-saxónicos têm muitas equivalências, a ponto de as confundirem nalgumas frases que, para nós, causam problemas de tradução. Porém, as diferenças linguístico-culturais não são o tema desta crónica. Vamos espicaçar a ideia da inveja.

Os Antigos Gregos acreditavam que este sentimento tinha a ver com uma produção excessiva de suco biliar que, como se sabe, é produzido no fígado. Este excesso de bílis daria aos invejosos uma coloração de pele amarelo-esverdeada – e daí as referências literárias associando o verde à inveja que, aliás, já remontam ao romano Ovídio.

No Cristianismo, a inveja é de tal forma mal vista que é um dos sete pecados capitais. Dante via na inveja uma perversão amorosa, pois que se desejava o mal do outro, visando (ob)ter o que o outro tinha. Já aqui se verifica como a inveja é diversa do ciúme. O Judaísmo explica isto melhor conceptualmente, até porque admite que Deus é ciumento mas não é invejoso, isto é não admite outro algo que não seja a exclusividade da adoração (conotada com o ciúme) mas condena a cobiça das possessões de outrem (conotada com a inveja).

A maior parte das crenças, mesmo as mais tribais, têm tradições e até amuletos para afastar a inveja – “o olho grande” que alguém deita sobre nós ou o que nos pertence, seja isso que nos pertence algo material ou as nossas qualidades intrínsecas ou mesmo a nossa situação vivencial. O tal “olho grande” transforma-se em “mau olhado” e acaba por causar-nos má sorte.

Certos indivíduos encolhem os ombros e pensam “Mas eu nada tenho que possa ser invejado!” Nada de mais errado. Para um invejoso, qualquer algo que outro tenha e ele não, é legítimo de ser invejado – pode ser riqueza, juventude, maturidade, beleza, filhos, liberdade, amor, trabalho, personalidade, amigos, inteligência, o que seja. Para um invejoso, a simples existência do invejado incomoda.

A inveja corrói, como ratos continuamente roendo o interior de uma habitação. Não é um sentimento que tenha tendência a desaparecer com o tempo; antes se intensifica neste modo de erosão contínua e desgastante. A inveja nasce de um sentimento de inferioridade em relação ao outro, crescendo essa inferioridade de forma hostil e ressentida. Pode tornar-se patológica, com desejos obsessivos de obter o que o outro possui, mimetização da outra pessoa de tal forma que se tenta anulá-la e perseguição do invejado tentando possuir o que ele tem.

Clinicamente, a inveja não é algo diagnosticável como perturbação da personalidade. Porém, quem sofre de personalidade narcisista maligna sofre de inveja exacerbada. Os narcisistas necessitam constantemente de admiração, pelo que qualquer recordação das suas imperfeições ou limitações lhes causa impotência e raiva (mais ou menos contida – ou até muitíssimo bem disfarçada -  é uma questão individual). O que é certo é que apenas a destruição de quem é, aos seus olhos, “melhor do que eles” lhes trará sossego. Faz lembrar a Madrasta da Branca de Neve que perguntava ao espelho “Quem é mais bela do que eu?” e, não suportando a resposta, teve de mandar matar aquela que possuía a qualidade que ela – Madrasta – entendia ser a qualidade suprema que devia pertencer-lhe acima de todas as outras pessoas.

A inveja não é apenas material para contos de fadas nem muito menos para receituários de bruxas. É um sentimento real e corrosivo, escondido por quem o sente – pois quem o experimenta tem também muita vergonha de o sentir, jamais admitindo que gostaria de ser como essa outra pessoa que tanto olha e persegue. A inveja é, como disse Schopenhauer, “um deleite na má fortuna alheia e constitui a pior característica da espécie humana. O grau de inveja de um ser humano demonstra o quão infeliz ele é; a sua constante obsessão pelo outro mostra o quão entediante é a sua própria vida.”

Thursday, January 14, 2021

Quarentenas e outras loucuras

 Enquanto escrevo isto, o mundo debate-se com aquilo que diz ser uma estirpe diversa do vírus Covid-19 vinda do Reino Unido. Agora, já podemos culpar não só a China mas também a Europa, o que já vinha fazendo falta para equilibrar. Perdão, não é a Europa. É o Reino Unido, esse dissidente. Culpar a Europa seria pouco inteligente e nada estratégico nos tempos que correm. A política da coisa não é acidental.

Mas vamos ao tema, que é as quarentenas. Tal como muitos, segui através das redes sociais a odisseia de vídeos do-repórter da National Geographic Travel, Justin Jin, que foi mostrando ao mundo a sua quarentena de 14 dias num quarto de hotel em Shangai.

Jin reside na Bélgica, mas nasceu em Hong Kong. Dado o seu pai estar muito doente com cancro, Jin decidiu viajar para Shangai, onde vive o pai. Como viaja por todo o mundo à conta do seu trabalho, a primeira coisa relatada nos vídeos são as diferenças de controlo “covidiano” que o próprio Jin presenciou em vários países, controlo esse que não tem estatística directa com o número e/ou aumento de casos. Como explicar?

Finalmente, após muito drama bur(r)ocrático, ao entrar no avião, Jin deparou-se com a tripulação equipada com fatos “galácticos”, estilo nave espacial. Tudo para que o voo intercontinental estivesse desinfectado. Vestiam fatos hazmat, aquele tipo de fato impermeável completo com tubo de respiração. Mais tarde, em conversa, Jin descobriu que também usavam fralda para não terem de utilizar a casa de banho. Qualquer mãe vos saberá dizer o que provoca uma fralda que não é mudada durante várias horas…

À chegada, teve lugar mais um teste de saúde. Isto apesar de Jin ter feito dois testes que o consideraram livre de Covid e de ter vindo num voo à prova de tudo. Finalmente, apesar de ser (re)considerado saudável, Jin tem de entrar em quarentena. O hotel será inteiramente custeado pelo próprio, porque a decisão de viajar é pessoal. No hotel, Jin foi recebido por uma médica, vestida em hazmat, que lhe explicou as regras da quarentena.

Jin recebeu cotonetes com álcool, cloro, e desinfectante anti-bacteriano para as mãos -uma estupenda ideia de marketing deste confinamento que o mundo todo “engole” e eu jamais entendi pois ou bem que estamos a lutar contra um vírus ou bem que se trata de bactérias, mas uma coisa não é a outra! Um entendido que me ilumine, por favor.

A médica também lhe deu um balde para as suas necessidades e explicou que ele tinha de lhes colocar desinfectante durante meia hora e só depois largá-las na sanita, “para proteger os esgotos da cidade”. Sem comentário. À medida que Jin ia passando, um funcionário fumigava o chão por onde ele passava. O seu quarto também seria fumigado com desinfectante diariamente nos dias seguintes. Recordo que é um quarto do qual ele não saía, pelo que o próprio Jin, em breve, respirava desinfectante por todos os poros.

A comida era servida embrulhada em celofane, plástico esse também fumigado. O único momento em que Jin podia abrir a porta do quarto era para receber a comida desinfectada e para medir a sua temperatura (duas vezes por dia).

Não sabemos os efeitos destas desinfecções no corpo humano. Porém, os efeitos do pânico são bem conhecidos. É uma loucura galopante que existiu desde o princípio dos tempos: grassa depressa como um fogo e, como este, é difícil de apagar. Basta uma faúlha de fogo para queimar uma floresta. Basta uma centelha de pânico para provocar uma onda. Por isso mesmo, quando foi perguntado aos vizinhos do pai de Jin se este poderia terminar os últimos dias da quarentena em casa – fiscalizado diariamente pelos médicos – os vizinhos disseram que não. O medo e a ignorância são as grandes armas que ajudam a levar longe o fantasma deste Covid-19.

Finalmente, Jin acabou a quarentena. Em Shangai, encontrou uma cidade normalíssima, sem máscaras obrigatórias e onde o divertimento impera, porque ali a Covid é “old news”. Conclusão: o mundo está um bocado dissociativo e, de futuro, devíamos apostar na saúde… mental.