Neste momento histórico em que boa parte dos seres humanos estão a entregar-se às mais desesperantes torturas mentais ou estão a contas com o seu karma (dependendo da filosofia de cada um), é boa época para falarmos de jogos de manipulação – aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “mind games” e os políticos e os advogados chamam “trabalho”.
Parêntesis: consigo sempre fazer novos amigos logo no primeiro parágrafo.
Nem sequer é de propósito. Fim de parêntesis.
Vou debruçar-me, porém, em jogos mentais de menos tribuna e maior depravação.
Há jogos extremamente perversos nos quais uma das partes (seja um
individuo, seja um grupinho) manipula psicologicamente alguém para o fazer
duvidar de si mesmo, incutindo-lhe subtilmente, e às vezes até docemente,
cenários que fazem a pessoa começar a questionar a sua própria memória, a sua
cognição, percepção e julgamentos. Este famoso “gaslighting” inclui, muitas
vezes, a construção de complexas tramas onde o manipulador faz crer ao
manipulado que este está a enlouquecer e que aquilo que ele
vê/ouve/pensa/acredita não é real mas fruto da sua decadente imaginação. Nestes
casos, não raro o manipulador finge-se muito preocupado com a saúde mental da
pessoa que manipula e, ao mesmo tempo que faz crer ao próprio e a todos que “X
está muito doente e a enlouquecer a olhos vistos”, pode também oferecer-se para
se responsabilizar por X, seja legalmente seja como seu cuidador no intuito de
o dominar completamente. Mata, deste modo, dois coelhos com uma cajadada:
coloca o manipulado em estado de ruptura nervosa enquanto faz crer à sociedade
que ele, manipulador, é um indivíduo do bem que, ainda por cima, se dispõe a arcar
com as responsabilidades de semelhante criatura. Se não conseguem imaginar uma
trama tão maquiavélica, vejam um filme com Ingrid Bergman chamado precisamente
“Gaslight”, onde o seu terno marido manobra as luzes e sons em casa até
convencer a pobre de que ela está a endoidecer e conseguir interna-la “para seu
próprio bem” (sendo que, no fundo, o “bem” seria dele que ficava com a casa
livre para melhor se dedicar às suas actividades criminosas).
O termo “gaslighting” ficou famoso desde os anos 60 e vem sendo utilizado nas
Ciências Humanas precisamente para descrever a manipulação que alguém faz sobre
outro na tentativa de alterar ou mesmo destruir a percepção que esse outro tem
da realidade. O nome vem das “luzes do gás” que se usavam antigamente e que
eram acendidas nas ruas assim que começava a escurecer – nalgumas cidades
europeias ainda se veem esses românticos candeeiros tipo lanterna, cuja luz
fraca e subtil provocava imagens imprecisas e difíceis de descortinar a olho
nu.
Gaslighting não é apenas feito por esposos abusadores, embora seja comum
nesses casos (outros filmes que exploram isto são The Girl on the Train ou Les
Diaboliques). É também bastante comum que crianças abusadas sejam vítimas de
gaslighting para que sejam convencidas que nada lhes aconteceu – sendo que,
neste contexto, pode tratar-se de todo o tipo de abuso, desde o físico ao
emocional, seja ele perpetrado por pais ou por mães. O mais importante é
controlar o manipulado, coisa que se faz por meio de minimização e
trivialização, esconder, abuso verbal contínuo, isolamento, debilitar o
processo de pensamento e de confiança pessoal. Um indivíduo sem confiança é
fácil de ser sugado por um narcisista.
Gaslighting também pode ser usado na política, embora não muito, porque
este é um jogo que funciona bem nas sombras mas que quando trazido para o
esplendor da luz tem tendência a mostrar-se ridículo quando exposto ao grande
público. Lembremos que a ideia é enlouquecer um indivíduo, e que é difícil
enlouquecer uma multidão com esta técnica. Porém, vejamos um exemplo de
gaslighting político: vários discursos de Donald Trump. Quando ele dizia
recorrentemente “Y é fantástico” e mais tarde referia publicamente “Eu jamais disse
que Y é bom. De facto, seria absurdo eu dizer algo assim”, estamos perante um
exemplo de gaslighting. Claro que aqui usei o exemplo Trump porque tenho amor à
vida, e não me apetece agora usar exemplos de pessoas a quem já apertei a mão…
não fossem apertar-me o pescoço.
Caros leitores, abram o olho e não se deixem manipular nem tão pouco
enganar. Nem sempre o louco é aquele que aparenta sê-lo.