... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 9, 2021

Se eu fosse eu

Que grande preocupação é a liberdade. O ser humano preocupa-se com a liberdade tanto ou mais do que a exerce. A liberdade não é um assunto moderno; é questão tão antiga quanto o primeiro homem. Aplica-se aquele provérbio chinês “moderno é a palavra mais antiga que existe.” Todas as religiões, todos os sistemas filosóficos, todos os paradigmas governativos se debatem com a liberdade como tema central – isto já para não falar dos sistemas legais e abstracções morais que regem a sociedade. Se até há ano e meio atrás a liberdade era uma questão teórica, hoje ela revela-se uma prioridade concreta com a realidade dos confinamentos e das máscaras e da (ir)racionalidade que está na base das regras a serem cumpridas.

Claro que numa crónica de poucos caracteres não vou dissecar a questão, que julgo ser a grande reflexão de todos nós a nível individual e colectivo. Desde os primórdios dos tempos que o ser humano vem reflectindo sobre isto. Veja-se que tanto o Islamismo como o Judaísmo acreditam de modo igual no livre-arbítrio (“o método divino de educação do homem”, “essa bênção e maldição colocada por D-us diante do ser humano”) e que a liberdade é também o pivot do Cristianismo (“Vós fostes chamados à liberdade. E que ela não vos sirva de pretexto [para outras coisas] mas sim para que estejais ao serviço uns dos outros”) e até uma das maiores crenças do Espiritismo (“A liberdade humana é o instinto mais natural, mas que não se confunda com libertinagem”).

Também os filósofos se debateram com a liberdade enquanto herança humana concedida fatalmente por estarmos vivos mas também anseio constante impossível de realizar devido aos condicionamentos do que é alheio a nós. Uma das correntes que mais abertamente foca o problema do homem livre é o Existencialismo que advoga que o homem é, ao mesmo tempo, condenado e livre: “Condenado porque não é o seu próprio criador; porém, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é ele o responsável por tudo aquilo que fizer” (Sartre). Quer acreditemos que a liberdade é a busca da verdade por meio da reflexão pessoal, o mais possível livre de dogmas (Sócrates), ou que liberdade é viver na graça divina escolhendo o bem sobre o mal (Santo Agostinho) ou ainda que liberdade é um desafio numa vida necessariamente limitada e absurda (Camus), o certo é que todos aspiramos a ser livres e esbarramos com limitações.

O inalienável direito a igual quinhão de liberdade por todos os seres humanos determina que a minha liberdade não possa interromper a liberdade do próximo pelo que toda a vivência livre exige ajustes com as nossas parcerias, para que ninguém sofra violações à sua liberdade. Daí que invadir a área de decisão de outrem seja um assunto de grande repúdio, “castigado” por quase todos os sistemas, senão vejamos, e tomando como exemplo as religiões (em si mesmas sistemas filosófico-culturais): todas as religiões monoteístas têm a frase “D-us é o único juiz”, independentemente da forma como agem ritualisticamente no aplicar ou não desta premissa. Reflectindo por dois segundos, verificamos como é correcto não tentar impor a nossa vontade ao Outro. Pois se nem sequer, quantas vezes, exercemos a nossa verdadeira vontade ou sabemos qual é! Quantas vezes não sabemos usar da nossa própria liberdade! Como podemos ousar escolher o caminho de outra pessoa se até sobre o nosso hesitamos?

Deixo aqui um poema de Clarice Lispector, que se intitula “Se eu fosse eu”:

“Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: Se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu” que a procura se torna secundária e começo a pensar. Diria melhor, sentir! E não me sinto bem! Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento. A mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto, já li biografias de pessoas que passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei! Metade das coisas que eu faria, se eu fosse eu, não posso contar! Acho, por exemplo, que por um certo motivo, eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu, daria tudo o que é meu e confiaria o futuro ao futuro. “Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo! Bem, sei, experimentaríamos enfim, em pleno a dor do mundo. E a nossa dor! Aquela que aprendemos a não sentir! Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo. E também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais!”