... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, April 23, 2021

Joguinhos à média luz

Neste momento histórico em que boa parte dos seres humanos estão a entregar-se às mais desesperantes torturas mentais ou estão a contas com o seu karma (dependendo da filosofia de cada um), é boa época para falarmos de jogos de manipulação – aquilo a que os anglo-saxónicos chamam “mind games” e os políticos e os advogados chamam “trabalho”.

Parêntesis: consigo sempre fazer novos amigos logo no primeiro parágrafo. Nem sequer é de propósito. Fim de parêntesis.

Vou debruçar-me, porém, em jogos mentais de menos tribuna e maior depravação.

Há jogos extremamente perversos nos quais uma das partes (seja um individuo, seja um grupinho) manipula psicologicamente alguém para o fazer duvidar de si mesmo, incutindo-lhe subtilmente, e às vezes até docemente, cenários que fazem a pessoa começar a questionar a sua própria memória, a sua cognição, percepção e julgamentos. Este famoso “gaslighting” inclui, muitas vezes, a construção de complexas tramas onde o manipulador faz crer ao manipulado que este está a enlouquecer e que aquilo que ele vê/ouve/pensa/acredita não é real mas fruto da sua decadente imaginação. Nestes casos, não raro o manipulador finge-se muito preocupado com a saúde mental da pessoa que manipula e, ao mesmo tempo que faz crer ao próprio e a todos que “X está muito doente e a enlouquecer a olhos vistos”, pode também oferecer-se para se responsabilizar por X, seja legalmente seja como seu cuidador no intuito de o dominar completamente. Mata, deste modo, dois coelhos com uma cajadada: coloca o manipulado em estado de ruptura nervosa enquanto faz crer à sociedade que ele, manipulador, é um indivíduo do bem que, ainda por cima, se dispõe a arcar com as responsabilidades de semelhante criatura. Se não conseguem imaginar uma trama tão maquiavélica, vejam um filme com Ingrid Bergman chamado precisamente “Gaslight”, onde o seu terno marido manobra as luzes e sons em casa até convencer a pobre de que ela está a endoidecer e conseguir interna-la “para seu próprio bem” (sendo que, no fundo, o “bem” seria dele que ficava com a casa livre para melhor se dedicar às suas actividades criminosas).

O termo “gaslighting” ficou famoso desde os anos 60 e vem sendo utilizado nas Ciências Humanas precisamente para descrever a manipulação que alguém faz sobre outro na tentativa de alterar ou mesmo destruir a percepção que esse outro tem da realidade. O nome vem das “luzes do gás” que se usavam antigamente e que eram acendidas nas ruas assim que começava a escurecer – nalgumas cidades europeias ainda se veem esses românticos candeeiros tipo lanterna, cuja luz fraca e subtil provocava imagens imprecisas e difíceis de descortinar a olho nu.

Gaslighting não é apenas feito por esposos abusadores, embora seja comum nesses casos (outros filmes que exploram isto são The Girl on the Train ou Les Diaboliques). É também bastante comum que crianças abusadas sejam vítimas de gaslighting para que sejam convencidas que nada lhes aconteceu – sendo que, neste contexto, pode tratar-se de todo o tipo de abuso, desde o físico ao emocional, seja ele perpetrado por pais ou por mães. O mais importante é controlar o manipulado, coisa que se faz por meio de minimização e trivialização, esconder, abuso verbal contínuo, isolamento, debilitar o processo de pensamento e de confiança pessoal. Um indivíduo sem confiança é fácil de ser sugado por um narcisista.

Gaslighting também pode ser usado na política, embora não muito, porque este é um jogo que funciona bem nas sombras mas que quando trazido para o esplendor da luz tem tendência a mostrar-se ridículo quando exposto ao grande público. Lembremos que a ideia é enlouquecer um indivíduo, e que é difícil enlouquecer uma multidão com esta técnica. Porém, vejamos um exemplo de gaslighting político: vários discursos de Donald Trump. Quando ele dizia recorrentemente “Y é fantástico” e mais tarde referia publicamente “Eu jamais disse que Y é bom. De facto, seria absurdo eu dizer algo assim”, estamos perante um exemplo de gaslighting. Claro que aqui usei o exemplo Trump porque tenho amor à vida, e não me apetece agora usar exemplos de pessoas a quem já apertei a mão… não fossem apertar-me o pescoço.

Caros leitores, abram o olho e não se deixem manipular nem tão pouco enganar. Nem sempre o louco é aquele que aparenta sê-lo.