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Friday, May 7, 2021

A sociedade e o homem

 No fim do século XIX, um senhor chamado Émile Durkheim começou a coçar a cabeça com a questão do suicídio – não porque estivesse a pensar nisso para si mesmo mas sim porque o preocupava o facto das pessoas se matarem bem como a ideia então em voga (e ainda hoje popular) de que o suicídio se dava em pessoas que eram psicologicamente doentes, coisa na qual ele não estava inteiramente disposto a acreditar. 

A lógica de Durkheim era simples e matematicamente incontestável: se fosse verdade que eram as pessoas “loucas” quem se suicidava, então a estatística de suicídios seria maior onde a estatística de doença mental fosse maior e inversamente seria menor onde a segunda também fosse menor. Como tal, decidiu analisar as taxas governamentais europeias de suicídio e de doença mental da época. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi que os hospitais psiquiátricos tinham consideravelmente mais mulheres do que homens lá internados. Porém, contrariamente a esta estatística, para cada mulher suicida havia quatro homens que cometiam suicídio. Também verificou que a doença mental ocorria mais frequentemente na maturidade dos indivíduos, ao passo que o suicídio tinha maior taxa de incidência na terceira idade. Durkheim vivia na França, pelo que as suas conclusões incidiram mais particularmente sobre este país, e algumas curiosidades foram mesmo muito específicas, por exemplo, os judeus eram o grupo étnico com maior taxa de doença mental; porém, eram o grupo com menor taxa de suicidas. Em conclusão: claramente, a doença mental e o suicídio eram questões absolutamente independentes.

Durkheim promoveu, então, a ideia de que o suicídio tinha a ver com a solidariedade social. Quanto mais um grupo partilhasse valores e crenças, quanto mais interagisse intensamente, e quanto mais solidariedade existisse entre os seus membros, menos hipóteses haveria de ocorrer suicídios no seu núcleo. Isto porque quando os indivíduos fossem atingidos por grande adversidade, seriam socorridos por aquela âncora de contexto social estável.

Assim, e de forma muito sumária: as pessoas casadas (obviamente em relações de companheirismo e não de fachada!) tinham uma taxa menor de suicídio do que as solitárias porque o cimento da amizade ao longo dos anos lhes permitia um enquadramento de estabilidade e de poder contar com outro alguém; as mulheres suicidavam-se menos porque a sua vida social era, quase sempre, mais preenchida e naturalmente mais intimista do que a dos homens, tradicionalmente seres mais fechados e distantes e com maior dificuldade na expressão de sentimentos; os judeus suicidavam-se menos porque séculos de perseguição os tornaram um grupo muito coeso socialmente; os idosos suicidavam-se mais frequentemente porque eram o grupo mais solitário, sem emprego, muitas vezes já sem família e sem amigos, vivendo sós, e tendo perdido o contacto com a tal âncora a que Durkheim chamou solidariedade social.

Assim, o suicídio variava de acordo com a (des)integração do individuo na sociedade. É importante notar que isto não nos explica as razões particulares de cada suicídio individual, onde cada um terá as suas questões diferentes. Porém, esta teoria ressalva e valida que a segregação versus a inclusão social é um factor determinante para determinar do apoio de alguém, influindo fortemente na sua decisão de continuar a viver.

Entretanto, havia outras questões mais complexas, até porque Durkheim também considerava haver vários tipos de suicídio, incluindo o suicídio altruísta (a pessoa que deixa de viver por devoção ao interesse de outro alguém, por exemplo em cenários de guerra) e o suicídio anómico (quando a pessoa vive num ambiente onde os códigos de comportamento estão tão mal definidos que tudo é desordem, pelo que se torna complicado até perceber as implicações da sua tomada de decisão). Estes são diferentes do suicídio egoístico.

Mas o importante a reter é o que Margaret Mead, antrópologa americana, também disse, anos mais tarde, quando lhe perguntaram qual era o primeiro sinal de uma civilização que ela tinha encontrado nas suas pesquisas. Mead não falou de cerâmicas antigas, mas sim de um fémur partido e sarado. “Porque”, disse ela, “antigamente, quando alguém partia o fémur, era deixado para trás como um animal inútil. Mas o facto de que um ser humano perdeu tempo a cuidar de outro até ele ficar com o fémur em bom estado – e isso leva tempo! – é sinal de que a civilização chegou à Humanidade.”