Quando pensamos em estratificação social, pensamos na palavra “classe”: uns são da classe média, outros da “alta” e outros da “classe baixa”. Hoje em dia, não é politicamente correcto utilizar estes conceitos - a não ser que se seja marxista ou sociólogo, bem entendido. Caso contrário, é menos polémico falar de racismo ou de sexismo do que de desvantagens ligadas à classe social. Isso tem muito a ver com a lavagem cerebral dos filmes de Hollywood que nos mostram que o “self-made-man” é uma realidade potencial. Neles, qualquer tipo pode começar numa empresa como limpador de vidros e chegar a CEO da mesma empresa dois anos depois. Estes sonhos do ecrã fazem o cidadão médio pensar que algo está errado consigo porque não consegue atingir a mesma subida económica. Assim, na dúvida de saber se tem alguma problemática e da culpa ser sua, cala-se sobre o conceito de “classe”.
Apetece dizer “Só na América!” porque aqui, nesta geografia, o Will com
capacidades intelectuais acima da média, sendo pobre, órfão e varredor da
Universidade, bem se podia dedicar a resolver equações durante a noite, que
nunca ninguém havia de reparar nele – sim, é o enredo do filme “Good Will
Hunting”. Conclusão: existem diferenças culturais importantes no que diz
respeito à estratificação social, nomeadamente às variações de mobilidade
social. Se é verdade que nos E.U.A., e de forma geral em todo o Mundo Novo, a
mobilidade social intrageracional pode acontecer, a verdade é que no Velho
Mundo a possibilidade de um indivíduo ascender socio-economicamente é quase
nula. Porém, em ambas as geografias, a mobilidade entre-gerações é bem
possível, ou seja, há vários casos em que o avô era de uma classe social baixa
e o bisneto ascende a uma classe social desafogada.
Tal acontece no Velho Mundo porque aqui ressoam os ecos feudais, algo que
no Novo Mundo não se aplica porque, historicamente, não viveram o Feudalismo.
Nessa época, quem nascia senhor da terra, morria nessa condição e os seus
filhos herdavam o título; quem nascia servo morria servo e os seus filhos
seriam servos. Era um sistema de estratificação social baseado na atribuição de
um título que se cristalizava na hereditariedade. Incluo no Velho Mundo as
sociedades muito antigas, como sejam as asiáticas, onde podemos exemplificar
com o sistema de castas da Índia: só se pode casar com pessoas da mesma casta e
certas profissões estão reservadas para determinadas castas. Este tipo de
sistemas é completamente oposto a um sistema baseado no mérito, onde a ascensão
social se faz por reconhecimento de capacidades.
O conceito de “classe” é bem mais do que uma questão monetária. Tem muito a
ver com poder e com a capacidade de influência que uma pessoa pode exercer. Em
suma, tem a ver com estatuto. Como exemplo: na Austrália e na Nova Zelândia, os
trabalhadores que recolhem lixo são soberbamente pagos mas não são considerados
classe “alta” apenas porque não são gente poderosa nem influente. Sobra-lhes em
dinheiro o que lhes falta em aristocracia. Assim, as dimensões não económicas
do conceito de classe são socialmente tão importantes como o dinheiro para
distinguir entre os vários grupos sociais. Senão vejamos: qual a representação
política de cada uma das classes da nossa sociedade? Ou dito de outra forma:
qual o background dos nossos políticos? Se não é igual, é bastante
semelhante.
Certa figura disse, recentemente, que isto acontecia porque certas “classes”
não tinham nem bom senso nem bom gosto. É cómico porque tentou citar Antero de
Quental, só que ao contrário. Deixo-lhe aqui um estudo de1984 de Pierre
Bourdieu que diz que, realmente, a “classe alta” prefere o Cravo Bem Temperado
de Bach e a “classe baixa” prefere a Rapsódia em Blue de Gershwin,
invariavelmente, quando confrontamos os indivíduos provenientes destas origens com
estes dois tipos de música. Mas, caríssimo orador, não é porque a “classe alta”
seja mais sensível ao contraponto e à fuga, típicos da complexidade musical
barroca, ao passo que a “classe baixa” já vai com sorte de captar o dinamismo
do jazz (que, aliás, não tem por que ser um estilo de música inferior a Bach,
atenção, é apenas um estilo musical diferente).É simplesmente porque, durante o
seu percurso educativo, os indivíduos da “classe alta” foram expostos a Bach e
o seu ouvido aprendeu amor à sua sonoridade… enquanto que os da “classe baixa”
nunca o tinham ouvido. A conclusão é generalista? Claro. Mas muito mais
generalista é dizer que a classe baixa não tem “bom gosto cultural”, quando, na
realidade, nunca na vida lhe foi dada a oportunidade para usufruir daquilo que “outros”
usufruem. “Outros” nos quais se inclui aquela pseudo-elite que temos e na qual tantas
das nossas figuras de proa se incluem.