... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, May 20, 2021

Dá-me música

Quando pensamos em estratificação social, pensamos na palavra “classe”: uns são da classe média, outros da “alta” e outros da “classe baixa”. Hoje em dia, não é politicamente correcto utilizar estes conceitos - a não ser que se seja marxista ou sociólogo, bem entendido. Caso contrário, é menos polémico falar de racismo ou de sexismo do que de desvantagens ligadas à classe social. Isso tem muito a ver com a lavagem cerebral dos filmes de Hollywood que nos mostram que o “self-made-man” é uma realidade potencial. Neles, qualquer tipo pode começar numa empresa como limpador de vidros e chegar a CEO da mesma empresa dois anos depois. Estes sonhos do ecrã fazem o cidadão médio pensar que algo está errado consigo porque não consegue atingir a mesma subida económica. Assim, na dúvida de saber se tem alguma problemática e da culpa ser sua, cala-se sobre o conceito de “classe”.

Apetece dizer “Só na América!” porque aqui, nesta geografia, o Will com capacidades intelectuais acima da média, sendo pobre, órfão e varredor da Universidade, bem se podia dedicar a resolver equações durante a noite, que nunca ninguém havia de reparar nele – sim, é o enredo do filme “Good Will Hunting”. Conclusão: existem diferenças culturais importantes no que diz respeito à estratificação social, nomeadamente às variações de mobilidade social. Se é verdade que nos E.U.A., e de forma geral em todo o Mundo Novo, a mobilidade social intrageracional pode acontecer, a verdade é que no Velho Mundo a possibilidade de um indivíduo ascender socio-economicamente é quase nula. Porém, em ambas as geografias, a mobilidade entre-gerações é bem possível, ou seja, há vários casos em que o avô era de uma classe social baixa e o bisneto ascende a uma classe social desafogada.

Tal acontece no Velho Mundo porque aqui ressoam os ecos feudais, algo que no Novo Mundo não se aplica porque, historicamente, não viveram o Feudalismo. Nessa época, quem nascia senhor da terra, morria nessa condição e os seus filhos herdavam o título; quem nascia servo morria servo e os seus filhos seriam servos. Era um sistema de estratificação social baseado na atribuição de um título que se cristalizava na hereditariedade. Incluo no Velho Mundo as sociedades muito antigas, como sejam as asiáticas, onde podemos exemplificar com o sistema de castas da Índia: só se pode casar com pessoas da mesma casta e certas profissões estão reservadas para determinadas castas. Este tipo de sistemas é completamente oposto a um sistema baseado no mérito, onde a ascensão social se faz por reconhecimento de capacidades.

O conceito de “classe” é bem mais do que uma questão monetária. Tem muito a ver com poder e com a capacidade de influência que uma pessoa pode exercer. Em suma, tem a ver com estatuto. Como exemplo: na Austrália e na Nova Zelândia, os trabalhadores que recolhem lixo são soberbamente pagos mas não são considerados classe “alta” apenas porque não são gente poderosa nem influente. Sobra-lhes em dinheiro o que lhes falta em aristocracia. Assim, as dimensões não económicas do conceito de classe são socialmente tão importantes como o dinheiro para distinguir entre os vários grupos sociais. Senão vejamos: qual a representação política de cada uma das classes da nossa sociedade? Ou dito de outra forma: qual o background dos nossos políticos? Se não é igual, é bastante semelhante.

Certa figura disse, recentemente, que isto acontecia porque certas “classes” não tinham nem bom senso nem bom gosto. É cómico porque tentou citar Antero de Quental, só que ao contrário. Deixo-lhe aqui um estudo de1984 de Pierre Bourdieu que diz que, realmente, a “classe alta” prefere o Cravo Bem Temperado de Bach e a “classe baixa” prefere a Rapsódia em Blue de Gershwin, invariavelmente, quando confrontamos os indivíduos provenientes destas origens com estes dois tipos de música. Mas, caríssimo orador, não é porque a “classe alta” seja mais sensível ao contraponto e à fuga, típicos da complexidade musical barroca, ao passo que a “classe baixa” já vai com sorte de captar o dinamismo do jazz (que, aliás, não tem por que ser um estilo de música inferior a Bach, atenção, é apenas um estilo musical diferente).É simplesmente porque, durante o seu percurso educativo, os indivíduos da “classe alta” foram expostos a Bach e o seu ouvido aprendeu amor à sua sonoridade… enquanto que os da “classe baixa” nunca o tinham ouvido. A conclusão é generalista? Claro. Mas muito mais generalista é dizer que a classe baixa não tem “bom gosto cultural”, quando, na realidade, nunca na vida lhe foi dada a oportunidade para usufruir daquilo que “outros” usufruem. “Outros” nos quais se inclui aquela pseudo-elite que temos e na qual tantas das nossas figuras de proa se incluem.

Friday, May 7, 2021

A sociedade e o homem

 No fim do século XIX, um senhor chamado Émile Durkheim começou a coçar a cabeça com a questão do suicídio – não porque estivesse a pensar nisso para si mesmo mas sim porque o preocupava o facto das pessoas se matarem bem como a ideia então em voga (e ainda hoje popular) de que o suicídio se dava em pessoas que eram psicologicamente doentes, coisa na qual ele não estava inteiramente disposto a acreditar. 

A lógica de Durkheim era simples e matematicamente incontestável: se fosse verdade que eram as pessoas “loucas” quem se suicidava, então a estatística de suicídios seria maior onde a estatística de doença mental fosse maior e inversamente seria menor onde a segunda também fosse menor. Como tal, decidiu analisar as taxas governamentais europeias de suicídio e de doença mental da época. A primeira coisa que lhe saltou à vista foi que os hospitais psiquiátricos tinham consideravelmente mais mulheres do que homens lá internados. Porém, contrariamente a esta estatística, para cada mulher suicida havia quatro homens que cometiam suicídio. Também verificou que a doença mental ocorria mais frequentemente na maturidade dos indivíduos, ao passo que o suicídio tinha maior taxa de incidência na terceira idade. Durkheim vivia na França, pelo que as suas conclusões incidiram mais particularmente sobre este país, e algumas curiosidades foram mesmo muito específicas, por exemplo, os judeus eram o grupo étnico com maior taxa de doença mental; porém, eram o grupo com menor taxa de suicidas. Em conclusão: claramente, a doença mental e o suicídio eram questões absolutamente independentes.

Durkheim promoveu, então, a ideia de que o suicídio tinha a ver com a solidariedade social. Quanto mais um grupo partilhasse valores e crenças, quanto mais interagisse intensamente, e quanto mais solidariedade existisse entre os seus membros, menos hipóteses haveria de ocorrer suicídios no seu núcleo. Isto porque quando os indivíduos fossem atingidos por grande adversidade, seriam socorridos por aquela âncora de contexto social estável.

Assim, e de forma muito sumária: as pessoas casadas (obviamente em relações de companheirismo e não de fachada!) tinham uma taxa menor de suicídio do que as solitárias porque o cimento da amizade ao longo dos anos lhes permitia um enquadramento de estabilidade e de poder contar com outro alguém; as mulheres suicidavam-se menos porque a sua vida social era, quase sempre, mais preenchida e naturalmente mais intimista do que a dos homens, tradicionalmente seres mais fechados e distantes e com maior dificuldade na expressão de sentimentos; os judeus suicidavam-se menos porque séculos de perseguição os tornaram um grupo muito coeso socialmente; os idosos suicidavam-se mais frequentemente porque eram o grupo mais solitário, sem emprego, muitas vezes já sem família e sem amigos, vivendo sós, e tendo perdido o contacto com a tal âncora a que Durkheim chamou solidariedade social.

Assim, o suicídio variava de acordo com a (des)integração do individuo na sociedade. É importante notar que isto não nos explica as razões particulares de cada suicídio individual, onde cada um terá as suas questões diferentes. Porém, esta teoria ressalva e valida que a segregação versus a inclusão social é um factor determinante para determinar do apoio de alguém, influindo fortemente na sua decisão de continuar a viver.

Entretanto, havia outras questões mais complexas, até porque Durkheim também considerava haver vários tipos de suicídio, incluindo o suicídio altruísta (a pessoa que deixa de viver por devoção ao interesse de outro alguém, por exemplo em cenários de guerra) e o suicídio anómico (quando a pessoa vive num ambiente onde os códigos de comportamento estão tão mal definidos que tudo é desordem, pelo que se torna complicado até perceber as implicações da sua tomada de decisão). Estes são diferentes do suicídio egoístico.

Mas o importante a reter é o que Margaret Mead, antrópologa americana, também disse, anos mais tarde, quando lhe perguntaram qual era o primeiro sinal de uma civilização que ela tinha encontrado nas suas pesquisas. Mead não falou de cerâmicas antigas, mas sim de um fémur partido e sarado. “Porque”, disse ela, “antigamente, quando alguém partia o fémur, era deixado para trás como um animal inútil. Mas o facto de que um ser humano perdeu tempo a cuidar de outro até ele ficar com o fémur em bom estado – e isso leva tempo! – é sinal de que a civilização chegou à Humanidade.”