... "And now for something completely different" Monty Python

Thursday, December 30, 2021

Palavras Doces

Quem já teve um namorado (ou namorada) de outra nacionalidade, sabe a comédia que, volta e meia, está presente nesse tipo de relações. Já escrevi sobre isso numa crónica que intitulei “A Comunicação”, onde conclui que quando nos dizem “o segredo de uma boa relação é a comunicação constante” certamente não estão a contar os casos em que é preciso aprender a gramática e vocabulário de outra língua antes de comunicar com o mínimo de inteligibilidade.

Também é difícil perceber piadas. Quanto mais dúbias são, mais difíceis de perceber. Um casal que não ri das mesmas coisas tem pouca longevidade na relação. Claro que há muitas pessoas que falam a mesma língua, mas não riem do mesmo e jamais sequer se percebem… Porém, o meu ponto é este: quem não fala a mesma língua, à partida, tem de fazer um esforço adicional para se tentar entender. Por um lado, é bom, porque logo se percebe quem está disposto a fazer esse esforço - que deve sempre ser mútuo, a não ser que haja uma língua franca que aguente as pontas. Mesmo assim, nunca deem valor a quem não se tenta esforçar. Por outro lado, em última análise, evitam-se discussões, pois não há discussão do que não tem possibilidade de ser debatido por falta de vocabulário.

No entanto, o meu tema de hoje são aquelas palavras doces que os casais usam para se chamarem entre si, caso não utilizem apenas os respectivos nomes. Por exemplo: querido/a, amor, fofo/a, e por aí fora, consoante os devaneios habituais de cada um. Cuidado quando estiverem a ensinar que “amor” pode ser usado como adjectivo, porque um estrangeiro imediatamente assumirá que “amora” é a declinação feminina da palavra. Falo por experiência.

Todos nós conhecemos sobejamente os termos que os anglo-saxónicos usam, ou não fossemos em todo o lado invadidos pela filmografia hollywoodesca e pela música pop, que nos bombardeiam com “baby”, “dear”, “darling”, “honey” e não muito mais porque o inglês também não é, convenhamos, das línguas mais imaginativas no que toca a afecto.

Na nossa mente, fazem sentido alguns dos termos espanhóis como “cariño”, “mi alma”, “mi vida”, “mi reina” (minha rainha), “mi cielo” (meu céu), mas outros soam bem mais estranhos como “gordo” ou pelo contrário “flaco” (magro), “viejo” (velho), “loco” ou até “pobrecito”. Enfim, os castelhanos têm certa vertente peculiar…

Do mesmo modo, os italianos. “Amore”, “tesoro”, “piccolina” (pequenina) soam bem, mas já custa a engolir termos como “cucciola” (cadelinha) e “topolina” (ratinha!!!) Muito há que dizer sobre as diferenças culturais. Ainda bem que o Topo Gigio fez parte da nossa tenríssima infância para percebermos que eles têm dos ratos uma referência muito sentimental!

Os franceses têm um lado romântico com “mon coeur” (meu coração), “ma belle”, mon bonheur” (minha felicidade), “ma mie” (meu miolo de pão), mon rêve (meu sonho)… A verdade é que podia ficar aqui todo o dia, porque raras línguas têm uma multiplicidade de vocabulário tão grande para denominar o ser amado. Mas quero deixar aqui alguns que desagradam ao portuga, como sejam “ma puce” (minha pulga), “ma biche” (equivalente ao Bambi, mas não soa bem), “ma crevette” (meu camarão), “mon chou” (minha couve).

Finalmente, que nomes doces usam os chineses? Em público, nenhum, jamais! Em privado, geralmente “baobao” (bebé) ou “baobei” (tesouro). Igualmente, “quin’ai de” (querido/a). Quase todo os restantes nomes carinhosos implicam o título acoplado de “marido” e “mulher” porque é uma cultura que dá enorme valor às relações comprometidas assinadas em papel. Tudo o mais são brincadeiras inconsequentes. Mas fiquem com estas pérolas, alegadamente carinhosas: “xingan” (meu coração e fígado), “xiao qiu yin” (pequena minhoca) e “ben dan” (tolinho).

Em suma, até para ser carinhoso com alguém, é preciso pensar bem no vocabulário, não vamos nós ofender o campo semântico interior de cada um. Como é fácil ofender mesmo quando não se intenciona! Nem quero imaginar a brutalidade de quando se insulta deliberadamente, dentro da Torre de Babel onde vivemos. Os intérpretes das Nações Unidas e outros do género devem ter muito trabalho a evitar confrontos.  

Thursday, December 16, 2021

Ninguém pediu para nascer

Se o leitor é médico, este artigo interessa-lhe. Sobretudo se é obstetra.

Há cerca de duas semanas, Evie Toombes ganhou um caso inédito num tribunal do Reino Unido onde tinha intentado acção judicial contra o médico da sua mãe por ter, literalmente, “deixado que [ela, Evie] nascesse.” Com a sua vitória, ganhou milhões como forma de compensação pelos seus 20 anos de vida - segundo ela, anos de sofrimento.

O requerimento judicial é ridículo, o julgamento é grotesco e a decisão ainda mais absurda. Mas o certo é que tudo isto aconteceu. No sistema judicial da Coroa uma sentença judicial tomada tem procedência total no sentido em que pode depois ser usada para justificar X decisões posteriores. Muito mais do que no sistema judicial romano, como é o nosso. Podemos, assim, esperar mais outras tantas decisões como esta no Reino Unido a partir deste ano. Médicos ingleses, ponham-se em guarda!

Poderíamos pensar que Evie Toombes até tem certas razões para se revoltar. Talvez viva amarrada a uma cama, ou tenha deficiências profundas mentais ou físicas, ou sofra dores constantes e outros tormentos. Deixem-me contar-vos quem é Evie Toombes e do que é que ela se queixa. Aos 20 anos, Evie é uma atleta de sucesso no hipismo de competição na modalidade de saltos. Convenhamos que não é o desporto mais simples nem tão pouco os saltos o fazem o mais suave para quem eventualmente sofra de alguma mazela. Apesar de ser considerada uma para-atleta, Evie compete tanto com para-atletas como com atletas que não sofrem de quaisquer deficiências físicas. Isto também nos indica que os seus problemas físicos não serão assim tão dramáticos. Mas, afinal, de que sofre Evie? Cortando o suspense, vamos ao que interessa: sofre de espinha bífida oculta e de dramas intestinais. Aos leigos, esclareço que há quatro tipos de espinha bífida, sendo que no mais grave o paciente pode deslocar-se apenas em cadeira de rodas ou ter mobilidade muito reduzida; no caso da espinha bífida oculta, os sintomas são tão ligeiros quanto praticamente indolores – como, aliás, o sucesso e o estilo de vida de Evie nos dizem (felizmente para ela!)

Porém, Evie é também uma influencer – o mesmo é dizer que tem umas páginas jeitosas nas redes sociais. Diz que os problemas de saúde arruinaram a sua vida. Dando uma olhada nas fotos, discordo. Tendo em conta que Evie tira várias fotos em que está a fazer tratamentos, e as usa com efeito promocional, parece-me que “a doença” até lhe tem dado imenso jeito para ser mais conhecida. Digamos que, não fosse a doença, Evie jamais seria tão lamentada, tão apoiada… e tão (re)conhecida como é!

No entanto, Evie processou o médico da mãe com o seguinte argumento cuja infantilidade tem que se lhe diga. Alegadamente pouco antes de engravidar, a Sra Toombes sénior dirigiu-se ao médico e disse-lhe que estava a pensar conceber. O médico, por seu turno, tem uma versão um pouco diversa até porque já não se recorda bem, afinal foi há 21 anos, e diz que pensa que a Sra Toombes já estaria grávida. Para o caso, pouco interessa. As Sras Toombes, sénior e júnior, alegam que o médico, Dr. Philip Mitchell, não aconselhou a Sra Toombes sénior a tomar suplementos vitamínicos extra (note-se, para além dos suplementos regulares) durante a gravidez. Em especial, aconselhou-lhe apenas a dose normal que todas as grávidas tomam de ácido fólico. Qualquer grávida e médico sabem ao que me refiro. Acontece que, por azar (e isto é, efectivamente, real) a deficiência em ácido fólico aumenta o risco de problemas no tubo neural – e logo, o risco de espinha bífida – em cerca de 70%. Até estou habilitada para falar pessoalmente do assunto, pois a minha segunda gravidez comportava este risco.

Acontece que, numa gravidez regular há 21 anos atrás, não seria estranho a Sra Toombes sénior tomar “apenas” a dose normal (já por si suplementar) de ácido fólico aconselhada a todas as grávidas. Só tomaria extras se o médico suspeitasse que o feto teria hipóteses de ter problemas o que, segundo todos os envolvidos, não era o caso!

Ainda assim, a juiz Rosalind Coe achou que o Dr. Mitchell era culpado de “wrongful conception” (concepção errónea). O nome também é giro, porque o pobre médico não terá sido, julgo eu, responsável pela concepção da criança. A língua é traiçoeira - ou a língua ou a Sra Toombes!

Assim (des)anda a justiça, desacreditando a medicina.

Thursday, December 2, 2021

Adolescente

O meu filho completou 13 anos. Desde o seu nascimento até agora, o tempo passou como um fósforo a queimar-se. Experimento esta sensação à medida que fico mais madura, porque na infância e na adolescência a sensação era diametralmente diversa: o tempo arrastava e nunca mais chegava a hora em que, finalmente, seria adulta. Depois, em adulta, descobri que a ideia de liberdade era marketing enganoso. Afinal, não traz tanta paz de espírito quanto isso: pagar contas, trabalhar e uma data de limitações impostas pelo sistema. É mais difícil ser revolucionária e manter espírito idealista quando se é adulta; apesar disso, para um visionário, a idade não importa – é uma questão de viver com um pé no futuro e outro na amplidão.

Aquilo que transmito aqui acerca dos adolescentes tem a ver com aqueles com quem convivo, nomeadamente o meu. Generalizo pela experiência. Convivo mais com rapazes do que meninas porque a idade imberbe ainda segrega ligeiramente o sexo oposto – quase tanto como se sente inclinada para ele.

Algo que acho muito engraçado são as expressões corporais recentes que observo nele, como o “rolar de olhos para cima” e “olhos-silenciosos-que-querem-dizer-jamais-farei-tal-porque-isso-é-inútil” (também conhecida como “obrigado pelos conselhos, mas vou fazer o que acho melhor”). Não me recordo de ter feito isto quando tinha 13 anos – aqueles que me leem e me conhecem desde essa idade, escusam de revelar intimidades, a bem da manutenção da nossa amizade!

Outro aspecto engraçado é que tudo gira à volta da internet. Esta geração já nasceu com o dedo conectado no telemóvel. Para eles, “comunicar” é mandar textinhos, mensagens de voz, vídeos curtos. O telefone já não serve para telefonar -isso é ideia tão antiquada quanto o Alexander Graham Bell. Suspeito que seja porque manter uma conversa exige um foco de atenção muito longo. O que observo nestes miúdos é que eles são muito rápidos, mais activos na vida, mais dinâmicos no conhecimento e mais urgentes em tudo. Já não suportam aulas com professores a falar durante uma hora ou escrever com papel e caneta – a verdade é que o mundo mudou radicalmente no ensino nos últimos anos, e ninguém teve de se adaptar tanto ao novo mundo como um professor. Os miúdos também já não entendem as comunicações ou relações como dantes: agora é conectar e desconectar, porque adiante há mais para descobrir. Ninguém tem paciência para ver filmes, porque demoram muito tempo e “nunca mais chega a mensagem essencial”. Os cursos têm de ser crash courses. Os vídeos têm de bombar com ângulos muito inovadores e cores muito diferentes (e durar pouco, sempre).

Ainda há poucos anos se fazia piadas sobre a geração Millenial. Porém, há dias, o meu filho disse, com grande descontracção, que eu não entendia a perspectiva dele porque eu sou uma Millenial e ele um Geração Z. De facto, eu nasci na virada do século e todos os que nasceram na virada do século vivem em inquietação filosófica permanente sobre a vida, o mundo e o mais além; mas os pós 2005, só pensam em “andar para a frente” e recusam prender-se a seja o que for que lhes tenha trazido sofrimento. Todas as gerações de virada de século apresentam grandes dramas existenciais – vejam Eça de Queiroz e a sua Geração de 70 do século XIX auto-intitulada “Os Vencidos da Vida”. Não deixa de haver certo paralelo com a grande busca de sentido revolucionária da minha geração um século depois. Já a geração do meu filho é bem mais optimista e seguramente muito mais concreta: em última análise, com a nossa revolução, devemos ter feito qualquer coisa de bem na criação destes buscadores da felicidade.

No fundo, tenho muita sorte, porque somos extremamente compatíveis e semelhantes. Digamos que, se fossemos um jogo, eu seria X mas ele seria a evolução de X, a versão aprimorada. É mais inteligente, mais aventureiro, mais corajoso. Mas também mais determinado, mais frontal. O que eu tenho de suave, ele tem de rasgado e pouco submisso. O que é natural, porque, de forma elementar, eu sou energia feminina e ele masculino.

Não raro perguntam se somos irmãos porque estamos naquele momento da vida em que temos a mesma altura e certo companheirismo vigoroso, resultado de muita luta conjunta. De resto, ele tem um ar maduro e sério, de voz muito grossa, ao passo que eu mantenho algo fisicamente juvenil de tempo por desabrochar. Mas nenhum de nós admite nunca essa ou outra confusão de papéis porque mãe é mãe. Mãe que é Mãe nunca será outra coisa.