Se o leitor é médico, este artigo interessa-lhe. Sobretudo se é obstetra.
Há cerca de duas semanas, Evie Toombes ganhou um caso inédito num tribunal
do Reino Unido onde tinha intentado acção judicial contra o médico da sua mãe
por ter, literalmente, “deixado que [ela, Evie] nascesse.” Com a sua vitória,
ganhou milhões como forma de compensação pelos seus 20 anos de vida - segundo
ela, anos de sofrimento.
O requerimento judicial é ridículo, o julgamento é grotesco e a decisão
ainda mais absurda. Mas o certo é que tudo isto aconteceu. No sistema judicial
da Coroa uma sentença judicial tomada tem procedência total no sentido em que
pode depois ser usada para justificar X decisões posteriores. Muito mais do que
no sistema judicial romano, como é o nosso. Podemos, assim, esperar mais outras
tantas decisões como esta no Reino Unido a partir deste ano. Médicos ingleses,
ponham-se em guarda!
Poderíamos pensar que Evie Toombes até tem certas razões para se revoltar.
Talvez viva amarrada a uma cama, ou tenha deficiências profundas mentais ou
físicas, ou sofra dores constantes e outros tormentos. Deixem-me contar-vos
quem é Evie Toombes e do que é que ela se queixa. Aos 20 anos, Evie é uma
atleta de sucesso no hipismo de competição na modalidade de saltos. Convenhamos
que não é o desporto mais simples nem tão pouco os saltos o fazem o mais suave
para quem eventualmente sofra de alguma mazela. Apesar de ser considerada uma
para-atleta, Evie compete tanto com para-atletas como com atletas que não
sofrem de quaisquer deficiências físicas. Isto também nos indica que os seus
problemas físicos não serão assim tão dramáticos. Mas, afinal, de que sofre
Evie? Cortando o suspense, vamos ao que interessa: sofre de espinha bífida
oculta e de dramas intestinais. Aos leigos, esclareço que há quatro tipos de
espinha bífida, sendo que no mais grave o paciente pode deslocar-se apenas em
cadeira de rodas ou ter mobilidade muito reduzida; no caso da espinha bífida
oculta, os sintomas são tão ligeiros quanto praticamente indolores – como,
aliás, o sucesso e o estilo de vida de Evie nos dizem (felizmente para ela!)
Porém, Evie é também uma influencer – o mesmo é dizer que tem umas
páginas jeitosas nas redes sociais. Diz que os problemas de saúde arruinaram a
sua vida. Dando uma olhada nas fotos, discordo. Tendo em conta que Evie tira
várias fotos em que está a fazer tratamentos, e as usa com efeito promocional,
parece-me que “a doença” até lhe tem dado imenso jeito para ser mais conhecida.
Digamos que, não fosse a doença, Evie jamais seria tão lamentada, tão apoiada…
e tão (re)conhecida como é!
No entanto, Evie processou o médico da mãe com o seguinte argumento cuja
infantilidade tem que se lhe diga. Alegadamente pouco antes de engravidar, a
Sra Toombes sénior dirigiu-se ao médico e disse-lhe que estava a pensar
conceber. O médico, por seu turno, tem uma versão um pouco diversa até porque
já não se recorda bem, afinal foi há 21 anos, e diz que pensa que a Sra Toombes
já estaria grávida. Para o caso, pouco interessa. As Sras Toombes, sénior e
júnior, alegam que o médico, Dr. Philip Mitchell, não aconselhou a Sra Toombes
sénior a tomar suplementos vitamínicos extra (note-se, para além dos
suplementos regulares) durante a gravidez. Em especial, aconselhou-lhe apenas a
dose normal que todas as grávidas tomam de ácido fólico. Qualquer grávida e
médico sabem ao que me refiro. Acontece que, por azar (e isto é, efectivamente,
real) a deficiência em ácido fólico aumenta o risco de problemas no tubo neural
– e logo, o risco de espinha bífida – em cerca de 70%. Até estou habilitada
para falar pessoalmente do assunto, pois a minha segunda gravidez comportava
este risco.
Acontece que, numa gravidez regular há 21 anos atrás, não seria estranho a
Sra Toombes sénior tomar “apenas” a dose normal (já por si suplementar) de
ácido fólico aconselhada a todas as grávidas. Só tomaria extras se o médico
suspeitasse que o feto teria hipóteses de ter problemas o que, segundo todos os
envolvidos, não era o caso!
Ainda assim, a juiz Rosalind Coe achou que o Dr. Mitchell era culpado de “wrongful
conception” (concepção errónea). O nome também é giro, porque o pobre médico não
terá sido, julgo eu, responsável pela concepção da criança. A língua é
traiçoeira - ou a língua ou a Sra Toombes!
Assim (des)anda a justiça, desacreditando a medicina.