Os departamentos de neurociência de Princeton, Columbia e Yale chegaram a uma conclusão que a ninguém espanta: o número de pessoas que confessa sofrer de vícios disparou durante a pandemia de Covid; da mesma forma, as pessoas que já se consideravam dependentes de algo sofreram um aumento do seu nível de dependência durante os últimos dois anos.
Já se sabia que quarentena, isolamento, proibições e tudo isso que se
passou a viver como rotina só veio causar dramas à saúde mental de todos de
forma geral. Porém, o profundo impacto que tais medidas tiveram no (já de si
frágil) equilíbrio que tem um dependente só agora começa a revelar-se.
É impossível num artigo tão curto explorar o tema com a profundidade que
merece, a começar pelo facto de que há muitos tipos de vícios (drogas, álcool,
jogo, sexo, internet, e até o vício que nos prende a alguém em particular ou a
uma sensação tóxica, como o masoquismo). Para arredondar, convenhamos que vício
ou dependência é tudo aquilo (ou aquele) que nos tem sob o seu controlo ao
invés de sermos nós os mestres; por consequência, cria-se uma relação de
escravidão por parte do controlado. É importante ter a frontalidade de aceitar
que é mesmo assim, porque, na verdade, rara é a pessoa que não tem, pelo menos,
um vício. Quantos de nós não somos escravos do telemóvel, que levamos para a
cama como uma chucha? E ele aí está, como primeira coisa ao acordar e última
antes de adormecer? Uma dependência, uma escravidão. Nesta óptica, ninguém pode
ter a sobranceria de olhar de cima para, por exemplo, um dependente de
substâncias. O que varia é tão só o objecto.
Numa época em que se convencionaram cortar estímulos exteriores, as pessoas
viveram mais ensimesmadas, trancadas. A falta de relações sociais não
beneficiou o soltar dos vícios, primeiro porque a esmagadora generalidade dos
dependentes tem relações familiares pouco benéficas, quando não inteiramente
tóxicas, e o seu círculo de “amigos” por vezes não passa de gente que ou
compartilha do mesmo vício ou se aproveita financeira e até psiquicamente dele.
Não são amigos. São outros tantos alienados, por um lado; do outro lado,
perigoso, existem os vampiros – o dependente acaba por ser viciado nos vampiros
também, mas só mais tarde se apercebe. Porquê? Volto a dizer: ficamos escravos
de tudo ou de todos os que nos controlam, seja de que forma for. Quem não for o
senhor de si próprio, é um viciado.
Existe uma componente extremamente exacerbada pela quarentena e suas
restrições que motiva o aparecimento de vícios: é o tédio do não ter que fazer.
Isto é diferente de lazer, que relacionamos com actividades prazeirosas,
dinâmicas, interessantes. O tédio advém de estar sem actividades e sem vontade
de coisa nenhuma. Quando há uma rotina apertada a seguir, há menos espaço para
tédio e para vícios. Não quero com isto dizer que as pessoas dependentes de X
ficam assim somente por estarem entediadas… Mas não há como negar que quando
temos algo muito urgente ou muito motivador entre mãos, não há espaço para intoxicações.
Obviamente que, nos estádios mais avançados do vício, o dependente já não
distingue coisa nenhuma, nem degraus de valor, porque na sua escravidão a única
coisa importante, única, é precisamente o vício. Mas aí, a pessoa já desceu até
ao fundo do poço.
As pessoas ocupadas são mais saudáveis? Podem ser ou não, depende do que
fazem. Os japoneses morrem de excesso de trabalho, o que também constitui um
vício. Relembremos que a palavra que define vício é “escravidão”. O que eu sei
é que as pessoas motivadas são, certamente, mais saudáveis. Todos precisamos de
estímulos, de alguma coisa que nos eleve, que nos faça chegar mais além. Algumas
pessoas precisam disso mais do que outras, pela sua personalidade, talvez muito
sonhadora, talvez muito passional, talvez muito carente, ou talvez com agressividade
auto-direcionada. Quando essas pessoas dedicadas encontram um estímulo
saudável, podem ser gloriosas: os maiores desportistas, os grandes músicos, os melhores
artistas, os mais incomparáveis místicos, foram – a seu modo – todos gente
extremamente focada num só ponto, digamos que escrava de um desporto, de uma
arte, de uma transcendência que os elevou à glória. Infelizmente, quando
pessoas muito necessitadas de estímulos encontram algo não saudável, caem num
turbilhão do qual é muito difícil sair.
No fundo, as pessoas dependentes são pessoas com enorme tendência para a
devoção. São capazes de se entregar a algo de corpo e alma. Em si, isto é uma
qualidade. A questão é que, mal direcionada, pode tornar-se não só um defeito
mas um perigo de vida. Se estas pessoas direcionarem a sua enorme capacidade de
busca, de entrega, de servir, a uma meta de firme e bom propósito, não só elas
como a Humanidade terá um salto qualitativo. O puzzle do mundo fica a ganhar. Se,
no entanto, permanecerem no limbo escuro onde são controladas, nunca saberemos,
e elas também nunca saberão, o que poderiam ter alcançado.