... "And now for something completely different" Monty Python

Friday, December 29, 2006

Trezentos e Sessenta e Cinco Dias por Estrear


Nunca fui daquelas pessoas que fazem resoluções de Ano Novo; aquelas pessoas que têm listas com objectivos a alcançar e dois meses depois já estão muito desiludidas porque as metas que impuseram a si mesmas já foram destruídas por uma mudança de rumo, pelas circunstâncias, por mil e um imprevistos que se atravessaram ou por pura falta de força de vontade delas próprias. Eu penso, à partida, que trezentos e sessenta e cinco dias são muitos dias novos à minha frente para eu decidir já hoje o que quero fazer em todos eles ou de mim mesma neles. Eu nem sei se amanhã vou continuar a querer o que quero hoje… E se quiser (fenómeno raro nos seres humanos, inconstantes por natureza!) é muito provável que tudo não dependa só de mim. Assim, com tanto dia em branco à minha frente, o que há a fazer é esperar o melhor e trabalhar para o resto (provérbio que fica melhor em inglês, porque rima: «hope for the best and work for the rest»). A verdade é que dias novos em folha temos todos os dias e não só o 1 de Janeiro. Ainda bem. 


Quando andava a tirar a Licenciatura, tive uma colega a quem os pais tiraram da Universidade durante dois anos porque, segundo as crenças deles, o mundo ia acabar antes do ano 2000, portanto era inútil as filhas continuarem a estudar, a aprender, a conviver, a sair de casa. Bem vistas as coisas, nem sei porque continuaram a alimentar-se. Mas isso fizeram. Fecharam-se em casa dois anos a fio. Quando chegaram à conclusão que o mundo não dava mostras de acabar, recomeçaram a viver, no verdadeiro sentido da palavra. Esta rapariga tinha dois anos de vida em atraso. E não estou a falar de estudos. Um dia perguntei-lhe (ela tinha muito bom humor, ao contrário do que se possa imaginar por este perfil de clausura) como é que as pessoas iam ser aniquiladas, segundo as ideias dos pais dela – se pensarmos um bocadinho, quando o Novo Ano chega a Lisboa (onde estudávamos) já chegou à Nova Zelândia há cerca de 12 horas, o que implicaria um processo divino muito lento e vingativo de destruição mundial, a meu ver… Ela disse que eles nunca se tinham questionado acerca disso.


Contrariamente a esta minha colega, o que mais faço é questionar-me. Isto não significa que sou nem melhor nem pior do que ela, mas sou, seguramente, diferente.


Não olho para o dia 1 de Janeiro como um dia especial; é tão importante como o 31 de Dezembro, porque estou viva e alerta em ambos. No entanto, é verdade que, se não faço resoluções de Ano Novo, páro sempre um bocadinho para pensar, não naquilo que gostaria de ter ou de fazer (isso ia parecer-me uma infantilidade sem nexo…) mas naquilo que fiz no ano anterior. Entro em balanço, como as lojas. Sobretudo, penso naquilo que aprendi pela experiência, no que interiorizei depois, nos erros que fiz também. Os erros são, afinal, rotas mal escolhidas. Felizmente, o bom das rotas é que podemos sempre virar de rumo; podemos é já não ir a tempo de ganhar a corrida… Mas também quem é que quer um troféu ? Era coisa para ficar a encher-se de pó e mais nada...


Agora é que este texto ia entrar na parte interessante e dramática – todos sabemos que as pessoas adoram um bocadinho de drama; o que não suportam é o tédio!... – em que eu vos contava o que tinha «aprendido» este ano. Mas não. Isto não é uma novela e eu tenho muito pouco jeito para contar histórias que não sejam sobre os outros. São os outros que observo (absorvo?) para depois os re-contar.


Como não me julgo tão generosa que dê opiniões sem que mas peçam nem tão sábia que conheça a melhor maneira de viver o próximo ano, posso só desejar-vos que se surpreendam com as coisas, que gostem de vocês e de quem vos rodeia e que o vosso tempo não se perca em inutilidades sejam elas de que espécie for, porque é o tempo o mais precioso que todos temos (e nem damos conta...). 


Monday, December 11, 2006

O Aniversário


Estamos perto do aniversário dele outra vez. Na verdade, no momento em que escrevo isto, ainda faltam umas semanas, mas - a avaliar pelo comportamento das pessoas - podia ser já amanhã. Já se vendem os bolos de Natal, há quem já tenha feito a árvore e o presépio, compram-se prendas e prendas e prendas (podia encher o resto da página com a palavra «prendas» que não fugia ao  tão falado espírito de Natal, não era?).


Uma vez, um padre católico explicou-me que estava provado que o homem Jesus tinha nascido em Março, mas que, por uma convenção eclesiástica, se tinha decidido celebrar o seu aniversário a 25 de Dezembro. Não acho mal. Muita gente nasceu num dia, foi registada noutro e celebra quando quer. Além disso, todos sabemos que as datas são convenções, e as tradições mais não fazem que assegurar à Humanidade a sua coesão. Com a continuidade de uma celebração, parece-nos que a nossa estabilidade continua, sentimo-nos mais seguros. Se, de repente, viesse agora um tipo dizer que o Natal era em Março, mandavamo-lo passear. Em Março, já temos a Primavera a despontar, obrigada. Não precisamos de um motivo extra de alegria.


Tenho a certeza que ele nunca pensou que isto ia chegar tão longe… «Isto» é a celebração do seu aniversário, naturalmente. Há 2006 anos atrás, a pregar no Médio Oriente sobre a paz e o amor universais e a possibilidade de redenção divina e de recomeçar a vida (não importava a sujidade que se tivesse feito, aos olhos da Humanidade), aposto todo o meu sangue em como nunca pensou que milhares de anos depois – ena, tanto tempo ! - iam celebrá-lo com um circo de luzinhas, fitas e bolas, peditórios para se dar aos mais pobrezinhos em nome dele (um pobre que era Rei… ou um Rei que era pobre… algo assim, a metáfora funciona, mas não quando quem a diz tem a barriga demasiado cheia, como costuma ser o caso), e prendas, prendas, prendas.


Atenção! Eu não sou contra o facto de darmos prendas. Acho uma ideia muito bonita ter-se escolhido uma época no ano em que toda a gente dá uma prenda a alguém que lhe é mais querido. É uma maneira (entre tantas outras possíveis) de se dizer  que se aprecia alguém. Mas, mais uma vez, levou-se a coisa longe demais e hoje são precisas variadíssimas prendas… Já ninguém se satisfaz com menos. Menos seria pouco. Menos seria depois ter de explicar à vizinha, aos amigos, no emprego que as coisas em nossa casa não andam bem… Que celebramos o aniversário dele com menos festa. Que, se calhar, nos apreciamos menos. Isto tudo, não sendo verdade (porque a alegria faz-se de risos e  a estima não se faz de dádivas materiais) passou a ser, porque se convencionou assim. Destrói a mensagem inicial de redenção e amor universal  - mas não faz mal, porque raramente nos lembramos dela; só serve de letra aos cânticos natalícios.


Outra coisa extraordinária são os enfeites da nossa celebração. Estamos atarefados a enfeitar a casa com neve artificial, com bonecos de neve, com a rena Rudolph, «the red-nosed reindeer» como diz a canção (!!!). Alguém, sinceramente, tem alguma memória infantil desta treta de rena americana? Fomos invadidos pela ideia do «White Christmas» e nem demos conta disso.


Há quatro anos atrás, o meu marido sugeriu-me que puséssemos um enfeite do Pai Natal a fazer surf. Eu disse que nem pensar, não era tradicional! «Para ti, não é, mas eu sou do Hemisfério Sul… Para mim, o Natal é na praia.»  Foi a primeira vez que pensei que o S. Nicolau também podia ser surfista. E é, para metade do mundo – uma metade na qual nós, Hemisfério Norte com a mania de todo poderoso, nunca pensamos.


Uma metade, não… Porque os judeus, os muçulmanos, os hindus, os budistas, e outros não celebram o Natal. Não é «a celebração universal». É uma celebração cristã. É ou começou por ser…? Penso que ainda é. O que o aniversário dele tem de bonito é que as pessoas sentem uma predisposição para serem mais generosas com todos os outros, pelo menos uma vez no ano, não importa porquê; e só por isso vale a pena celebrá-lo. Só por isso valeu a pena nascer um menino.


PS- Não escrevo os pronomes ou possessivos referentes a Jesus com letra maiúscula, porque não vejo porque havia um homem tão humilde de querer que se elevasse o nome dele num texto dessa forma. Assim, peço desculpa das eventuais ofensas que isso possa causar à Igreja Cristã, seja ela Católica ou Protestante (com letra maiúscula, evidentemente).


Wednesday, November 22, 2006

Desculpe, Disse "Igualdade de Circunstâncias"?


Todos sabemos como é que é, hoje em dia, concorrer para um emprego. Ou o nosso sobrenome é Cunha ou então nada feito – com raríssimas e honrosas excepções, algumas decorrentes até da sorte e não, propriamente, do mérito. Aliás, como ninguém neste mundo (sim, não é só em Portugal…) ignora este facto – ao ponto de já se dar a coisa por instituída e se achar que é natural (um mal de que se padece e para o qual não há cura, como a subida constante das taxas de juro, a corrupção na justiça ou a inércia pasmadinha que reinam em grande parte destas nossas tribos) – não vamos falar dele aqui. Até porque seria coisa para ofender dois terços da população e nós não queremos ofender ninguém – muito menos gratuitamente.


Reparem como estava, até aqui, a usar o plural majestático (também chamado de modéstia, porque esta forma verbal dá para ser grande ou pequenino mudando o tom para o que nos convem… e, ao usá-la, ganha-se um grande conforto!)


O certo é que, por descargo de consciência e porque a esperança é a última a morrer –mas morre, ainda que na praia… - lá se vai concorrendo a empregos (embora duvidando muito do uso do verbo «concorrer» quando utilizado na mesma frase que o substantivo «emprego»). O facto de se ser mulher condiciona ainda mais.


Pronto, já sei que é tabu falar-se disto num tempo iluminado e esclarecido como o nosso, em que a igualdade entre os sexos é ponto assente e homem que disser que não é assim é machista (espécime peludo, cuspidor para o chão, criatura cuja noção de «mulher» implica «aquela cujos metros quadrados a percorrer se desenrolam entre o quarto de cama e a cozinha») e mulher que disser que não é assim é feminista (espécime também peluda, pouco maternal, criatura cuja noção de «homem» implica «aquele que se pode abater após se ter retirado o esperma necessário à continuidade da vida»). Os de entre nós que são simplesmente a favor de uma perspectiva igualitária mas que acham que ela não existe são olhados com uma desconfiança de canto. Verdade, verdadinha, a mulher ainda não é vista como igual ao homem no que ao trabalho diz respeito.


Antes que me venham dizer «Ah, pois é, o bem que se fazia era meter às senhoras um sacho nas mãos para criarem calos!», digo-vos já que não vejo porque não. Não se pode negar que os homens têm – regra geral – mais força física. No entanto, não vejo porque não pode uma mulher pegar num sacho e cavar terra ou numa lixa e lixar as madeiras todas dum barco. Hipoteticamente, pode até demorar mais tempo, mas o trabalho fica feito (e, quem sabe, mais perfeitinho?). Não é uma questão de sexos, mas de indivíduos. Haja quem queira trabalhar e trabalhar com perfeccionismo e vontade. Aliás, temos muitos exemplos de mulheres a fazerem o que, vulgarmente, se denomina «trabalho d’homem» (e não é preciso recuar na História, ao tempo em que os homens iam à guerra e as mulheres tinham de fazer o que, anteriormente, lhes cabia a eles; basta olhar para algumas fábricas, algumas quintas, alguns navios, etc…)


Voltando, porém, aos «concursos» (entre aspas…), é curioso que uma mulher tenha de responder a determinadas questões que a um homem nunca são postas. Vá lá, ainda posso perceber que se coloquem questões como «pensa ter filhos?», porque a lógica patronal é que uma jovem mulher engravida, tem bebé(s) e depois não trabalha (mas recebe, caso esteja na raríssima situação contratual, porque recibo verde é esse ser inexistente) durante seis meses. É chato. Isto já para não falar dos eventuais problemas das grávidas em risco de aborto espontâneo que vão para casa mais cedo – sim, porque fora isso não se compreende que não se trabalhe até ao rebentamento das águas, como desde sempre e para todo o sempre, ámen.


Não posso entender, porém, que um (futuro) patrão ponha questões do tipo: «O seu marido… porque já lhe perguntei se é casada… o seu marido, que diz?  Acha bem que a menina / a senhora concorra a este emprego?» É tal qual como perguntar a uma menor de idade se o paizinho dela concorda, se dá autorização e assina a folhinha. Tenho a certeza que, a um homem, patrão algum (ou patroa, já agora…) pergunta se a mulher concorda com – e, convenhamos, não tem nada que perguntar, porque a vida pessoal, cada um resolve-a  como quiser, sem ter de dar contas ao emprego, partindo do princípio que um funcionário inteligente e responsável não deixa sequer que isso afecte a sua prestação.


Com a passagem do tempo, começo a perceber o que é que se entende por uma «boa rapariga» - é, afinal, uma rapariga amorfa. Quanto menos fazemos e dizemos, melhores pequenas somos. Se, porém, temos alguma atitude (quer seja ou não de valor), a par da meia dúzia que declara que «somos mulheres de garra», logo se levanta uma dúzia em coro a gritar que «afinal, com aquela cara de anjo, é o diabo em pessoa!». Mas boas raparigas, após mostrarmos a nossa voz, é algo que nunca voltaremos a ser…

Saturday, November 11, 2006

A Tradição Já Não É o que Era


Bem sei que Outubro é um mês a roçar o deprimente. O Outono nos Açores não é especialmente bonito nem colorido, chove quase tanto como em Abril com a agravante de que o que nos espera é o Inverno, estamos na ressaca do Verão e não apetecia nada deixar os dias morninhos e longos por um capacete de nevoeiro. Além disso, verifica-se uma debandada geral de gente: de estudantes que vão para fora da ilha, de turistas (pronto, está bem, podem sufocar o riso, já sei que não temos assim tantos, mas no Outono é que não vamos vê-los a tirar fotografias à torre do Relógio e ao seu largo de aspecto arruinado, de certezinha!), de iatistas que estão todos de férias na época baixa de Outubro (a Horta é incaracterística e meia despovoada sem eles), de emigrantes que já fizeram as visitas à família.  Juntemos a isto os rostos das criancinhas que já perderam a frescura expectante do regresso às aulas e temos uma melancolia quase generalizada.


Cada um lida com ela a seu modo. Há aquelas cidades (sim, nos Açores também, embora, felizmente, a Horta tenha o bom senso de não o fazer e espero que continue assim!) que se enfeitam prematuramente para o Natal, com bolas, luzes, pinheiros – de plástico, senão não aguentavam tanto tempo, já se vê… - e, sobretudo, um número infindável de pais natais, renas e bonecos de neve. Faz todo o sentido que nos preparemos para o Natal, essa festa de partilha, com tanta antecedência. Se eu fosse comerciante, ficaria deliciada! Como não sou, quando chega à quinzena natalícia, já estou capaz de dar um tiro ao primeiro bonequinho fofinho com nariz vermelhinho que me faz sacar da carteira porque é Natal (é que já há dois meses que vem sendo Natal e já ninguém aguenta tanta dádiva com cântico de fundo…)


A par disto (e deste mal, não se escapa também por cá), resolveu-se animar o fim de Outubro com uma importação irlandesa. Estou convencida que a culpa foi da minha geração porque julgo que antes (tanto quanto sei, mas estejam à vontade para me rebater com provas em contrário)  não havia memória de se celebrar uma coisa chamada Noite das Bruxas ou - mais apropriada e celticamente falando – Halloween. A coisa começou muito inocentemente, numa versão brincalhona, em que nos mascarávamos de qualquer coisa assustadora (enfim, alguns com menos esforço que outros…) nessa noite, para nos divertirmos e porque isso era mais uma oportunidade de sermos outro alguém por umas horas.


De resto, como é do conhecimento geral (por um milagre que se chama televisão-que-passa-a-vida-a-mostrar-filmes-americanos) o Halloween é a noite antes do Dia de Todos os Santos (uma contracçãozita de All Hallows Eve). Há mil e uma versões sobre como se iniciou esta tradição e como se propagou – fácil é perceber que chegou com os colonos aos E.U.A., mais difícil é entender porque é que foi bombardeada nos últimos anos para todo o mundo, como se tivesse alguma coisa a ver connosco, e mais ainda porque é que engolimos isto tudo tão bem e pedimos mais. Realmente, hoje em dia não há santa terrinha onde não se veja uma lojeca no mês de Outubro a vender uma abóbora com um sorriso cortado à faca e iluminada por dentro, tipo lanterna, ou uns caramelos embrulhados em papel com bruxas para as fatais criancinhas que agora hão-de (tradicionalmente!) bater-nos à porta nessa noite, ou fantasias de fantasma e vampiro ou até – pasme-se ! – livros sobre «Como enfeitar a sua casa para o Halloween»   não vamos nós agora ter uma casa menos adequadamente decorada do que a do vizinho para esta novíssima tradição que se impõe. É preciso estar a par. Afinal, não somos menos que a América. Também queremos uma Noite das Bruxas.


Até há bem poucos anos atrás, tínhamos a nossa própria tradição, no Dia de Todos os Santos, chamada Pão por Deus. Muito diferente do Halloween, mas com um ponto em comum – também nos batiam crianças à porta, mas era muito mais simpático, porque não nos ameaçavam com o terrível «doce ou susto!» que dizem os putos do Halloween . A mim, apetece-me logo dizer «Olha, por acaso não tenho doces, prega-me lá o susto que quiseres, filho…», porque me aborrece este ultimato. Já a tradição do Pão por Deus é muito mais terna e, sobretudo, é nossa. Não cheira a baú da América, cujas roupinhas Portugal usa mas ficam-lhe largas e vê-se logo que não são suas.


Não tenho absolutamente nada contra as celebrações das tradições de outros lugares, quando o fazemos sabendo que estamos a fazer isso mesmo: a celebrar festas de outras culturas e a aprender com isso. Mas esta mania de incorporar na rotina de um povo datas que nada têm de intrínsecamente a ver com ele não lhe acrescenta nada, pelo contrário. Cada povo é único e característico por ser diferente e são (também) as tradições tão diversas que trazem encanto e beleza a cada um, e que fazem valer a pena viajar, conhecer, aprender, inter-relacionarmo-nos com  pessoas de outras nacionalidades. Querer, a toda a força, implementar costumes que não são nossos não é uma prova de inteligência nem sequer uma boa estratégia turística, dado que ficamos iguaizinhos a outros tantos. Iguais, não; uma imitação parola e comercial.


Qualquer dia, inventa-se o Thanksgiving como grande tradição portuguesa, que não é mais que dizer excelente forma dos supermercados expandirem o negócio dos perus.


Sunday, October 15, 2006

«Demasiadas Notas, Meu Caro Mozart!»

«Outubro é o mês da música.» É isto que vemos propagandeado e não se percebe muito bem porquê – afinal, quem gosta, gosta sempre (tenho a impressão de já ter ouvido esta frase em qualquer lado…afinal, o marketing funciona!); quem não aprecia dificilmente se deixará contagiar por se ter institucionalizado o dia 1 de Outubro como o Dia Internacional da Música.


«2006 é o ano Mozart.»  Outra frase repetida até à exaustão e igualmente sem sentido porque de Mozart são todos os anos desde 1756. Já em 1991 tínhamos assistido a uma febre universal mozartiana, quando se celebraram (o verbo é extraordinário quando aplicado a esta situação) duzentos anos da sua morte. Escreveram-se milhares de ensaios, artigos, biografias, restauraram-se quadros, repensou-se a catalogação Köchel (com o devido respeito que inspira sempre a toda a gente a revisão feita por Einstein), reviu-se a peça de Peter Schaeffer e o filme de Milos Forman centenas de vezes e, acima de tudo, discutiu-se muito a vida de Mozart nos círculos ditos eruditos;  não sei até se mais do que se ouviu a sua música – afinal, único momento onde reside o magnetismo inexplicável e a intemporalidade que todos se esforçavam por descobrir em mil e um lugares secretos estranhos aos sons. 


Desde o fim de 2005 - os 250 anos do nascimento de Mozart celebraram-se a 27 de Janeiro deste ano e a «máquina» não perde tempo! - que vimos assistindo a uma agitação em tudo igual. Nada mudou. Salzburg e Viena continuam a disputar o wunderkind e recebem peregrinações turísticas - embora todos já saibamos, há muitos anos, que Mozart nunca gostou da sua terra-natal - , os biográfos ainda discutem a influência na sua vida da disciplina e visão do pai Leopold, do carácter (amoroso ou cínico?... mas seguramente adaptável e camaleónico) da mulher Constanze Weber e da sua  (agora  admitida como muitíssimo  exagerada) rivalidade com Salieri. Um pouco por todo o mundo, não têm conta os concertos que se realizaram para celebrar o aniversário de Mozart este ano, e ainda continuam a realizar-se, havendo mesmo quem tenha tido a iluminação intelectual de encomendar o Requiem para a quadra natalícia, demonstrando esta escolha uma apurada sensibilidade musical a par de um  elevadíssimo conhecimento terminológico (e prático, pois imagino o desconforto que se apoderará das pessoas na igreja quando sentirem o peso e a melancolia de uma Missa de Defuntos na época cristamente alegre de aniversário do Menino Jesus. Adiante.)


Escrever sobre música é ridículo e pedante. Ridículo porque se as palavras pudessem transmitir o que transmitem os sons, não haveria músicos mas apenas escritores. Teríamos um mundo insuportavelmente mais pobre. Pedante porque a tendência geral quando se escreve ou até se fala sobre música e não se pertence a esse mundo tecnicamente (com raríssimas excepções, como Aldous Huxley que, sendo doutra esfera, aparentava uma naturalidade invejável) é meter a música em ficheiros bibliográficos  que se leram e arrumá-la  em teorias formativo-sistemáticas que se aprenderam há anos atrás, donde resultam conversas melómanas onde entram construções poéticas como «mistério ambivalente» a par de palavrões como «dodecafonia». Banalidades que não acrescentam nada à música enquanto fenómeno transportador.


Hoje, já elucidados pelos historiadores quanto a alguns mistérios mozartianos (as paixões juvenis pela prima e pela irmã da mulher, as viagens e as enormes dificuldades profissionais e financeiras, a ligação ambígua ao pai, as suas crenças, a sua doença súbita que nada teve de misterioso como por tanto tempo se acreditou), não somos capazes de discernir o mais recôndito – a razão do apelo da sua música. A música de Mozart é, mesmo para os animais ditos irracionais, a mais chamativa, a mais vivificante e, paradoxalmente, a mais tranquilizadora, segundo os etólogos.


Podemos agarrar-nos a conceitos como o domínio técnico infalível da forma e da «simetria» (a palavra mais usada quando se fala em Mozart, depois das palavras «divino» e «humano», o que nos faz pensar que ele é a ponte de equilíbrio entre dois mundos opostos) das suas sinfonias, a incomparável «percepção humana» (ops!) das suas óperas, o fascínio e brilhantismo dos seus concertos, a maravilhosa duplicidade – a um tempo alegre e nostálgica – das suas sonatas, etc, etc… Nada disso interessa. É absolutamente irrelevante tentar explicar o prazer.


De resto, nem sempre ele foi unânime, pelo menos entre os pseudo-avaliadores (essas pessoas sempre tão gloriosamente importantes na sua época e depois tão imediatamente esquecidas dias após a sua morte). O Sacro-Imperador José II ao ouvir a ópera O Rapto do Serralho - hoje aclamada como deliciosamente imaginativa - bocejou :«Demasiadas notas, meu caro Mozart!».


Afortunadamente, Mozart não prestava muita atenção aos seus mecenas ou a quem quer que fosse. A sua consciência musical era apenas a de que a música era. Sem necessidade de explicações ou consequências. E, nele, a música era um rio inesgotável  porque, tal como o sangue e a linfa que foram a sua curta vida, a música era Mozart.



Friday, October 6, 2006

Mudam-se os Tempos...


Em conversa com alguns miúdos (enfim, não tanto como isso, já são maiores de idade e têm mais 20 cm de altura do que eu,  mas, dado que 10 anos nos separam, a tendência é para os «miudizar» - sou capaz de ter inventado o verbo agora mesmo, atenção dicionário Houaiss!), descobri que a minha antiga escola secundária, hoje mais conhecida por uma sigla qualquer que me recuso a repetir por achar ridículo vivermos num mundo de siglas, proibíu que se dêem beijos na boca dentro do recinto escolar.


Serei só eu a única adulta, sã em mente e corpo (pelo menos ainda não fui internada por nenhuma mazela respeitante a estes) a achar esta medida absolutamente estapafúrdia?


A coisa torna-se ainda mais engraçada se pensarmos que a proibição é ideia de um grupo de pessoas que, quando eram jovens (basta fazermos as continhas à idade que têm…), seriam certamente todas muito arejadas e algumas até auto-denominadas hippies – vá lá, à escala do arquipélago, onda a onda hippie chegou muito mais tarde e foi sempre bem mais soft . De qualquer modo, quando andavam no liceu, estes senhores e senhoras – hoje tão predispostos a ver num beijo um pecado! - estavam  dentro da onda  da liberdade e do flower power. Todos sabemos que a máxima vigente da época destes senhores era MAKE LOVE NOT WAR e com isto está tudo dito. Resta saber se o make love era tão directo que se ia lá sem beijos nem nada. Espero, sinceramente, que não.  Estes senhores e senhoras ainda falam dos namoros e atrelamentos que tinham «no liceu» (e não «naquele tempo», note-se o pormenor semântico), mas agora querem convencer a malta que namorar dentro da escola «não se deve fazer», seguindo as boas regras de Frei Tomás, faz o que ele diz e não o que ele faz.


Entretanto, estes senhores cortaram os cabelos, fizeram as barbas, as senhoras subiram cada vez mais os saltos dos sapatos e puseram maquilhagem, eles e elas empinocaram-se nas roupas (não esquecer as fundamentais gravatas para eles) e começaram a ficar muito cansados. O cansaço crescia à medida que passavam mais tempo sentados em confortáveis cadeiras, normalmente conhecidas por «cadeiras executivas». São cadeiras que se vendem no hiper, mas só dão estatuto quando se pode fazer leis (umas a torto, outras a direito) ou mandar em meia dúzia de gente (nem que seja na comissão de moradores do prédio) sentado nelas. Depois, o cansaço engorda, o pessoal deprime-se e para chatear aqueles com ar juvenil e bem-disposto é caçá-los – cortar-lhes isso da beijoquice, por exemplo. Que pouca vergonha é essa agora ? Eles, no seu tempo (perguntem-lhes)  não beijavam ninguém  na escola!


Decerto haverá pais preocupados e professores iluminados que defendam que os namoros dos filhos/alunos dentro do recinto escolar lhes desviam a atenção das disciplinas a serem estudadas. Ah ah ah ! E outra vez : AH AH AH ! É mais ou menos como dizer que as batatas fritas estão no prato para tirar o lugar ao bife. As indecentes. A partir de hoje, devíamos comer só bifinho. Sem salada, sem batatas, sem arroz, sem molho. Seco e duro. Toma lá. Até o saboreias melhor.


A escola é onde um adolescente passa mais tempo. Não é unicamente o lugar onde vai aprender Português, Matemática, Biologia, Inglês, Desporto (embora também seja isso, o que já não é nada dizer nada pouco!). É também  o lugar onde aprende a viver em sociedade, porque o microcosmos familiar é uma célula demasiado pequena  (e quantas vezes deficiente ou até inexistente) para que ele possa apreender as ligações inter-pessoais que, de qualquer modo, são demasiado ricas e vastas  para se realizarem em pleno (só) aí. O amor faz parte da vida, e quando não faz é de lamentar. Parece-me muito perigoso incutir esta noção como regra – a de que uma manifestação de amor  (porque um beijo é tão só isso e não o tabu que querem fazer dele) está proibida.


Bem sei que muitos pais (e certos professores, meus caros colegas) abanam a cabeça a dizer que os meninos que querem namorar podem ir para casa fazê-lo. Do ponto de vista de um pai preocupado com a sua filha (porque é disso que se trata) não me parece muito inteligente. Qualquer casa oferece muitos mais perigos, com tanto chão para rebolar, sofás e camas fofinhas e (sobretudo) portas que se podem trancar.  Quem diz casa, diz outro local com chave. A imaginação de alguém a quem uma proibição foi imposta é quase ilimitada. Como sabemos, proibir é incentivar a vontade de um coração rebelde. Então, um apaixonado trepa paredes lisas.  


Se for rigorosa na sua proibição do beijo, a escola dentro em pouco levará à sua própria desertificação, excepto nos momentos absolutamente necessários para a prática do desporto e para a assistência de aulas. Isto porque ninguém prevê quando é que um beijo pode acontecer, certo?


Caros pais e colegas, a vossa preocupação é um pouco excessiva. Afinal, que a ciência tenha conhecimento, ainda não se engravida pela língua… 


Friday, September 15, 2006

O Nosso Mal


Há uma doença terrível, da qual pouco se fala abertamente, mas que julgo ser uma das que mais pessoas ataca a nível internacional.  As farmácias vêem-se desprovidas de medicamentos para combater os sintomas deste mal que grassa a olhos vistos. O facto é que causa imensas dores, que se situam ali mesmo na junção entre o braço e o antebraço, vulgarmente conhecidas por todos como dores de cotovelo. Agora, que já sabem do que estou a falar, pensem um bocadinho e vejam lá se não conhecem uma variedade absurda de pessoas afectadas por isto, por um motivo ou outro. Incrível, não é ?


Outro sintoma, claramente óbvio da patologia a que me refiro, é o tempo que os doentes passam a dedicar-se a um passatempo, que dadas as proporções desta catástrofe galopante, já se tornou no passatempo mundial: a maledicência.


Todavia, este hobby assume características muito peculiares na nossa cultura. Senão, vejamos: é tido como aceitável e até natural que um amigo de alguém diga deste as piores coisas quando o outro não se encontra presente, segundo a máxima « Sou amigo dele, mas não deixo de ver que fulano é um incapaz / um ignóbil / um estupor / um vendido / etc, etc, etc… ».  Apetece imediatamente  perguntar « Como é que és amigo de um incapaz / um ignóbil, … e mais esses adjectivos todos com que o brindaste agora ? » Sim, porque deve ser um grande fardo andar a aturar uma personalidade dessas ! Que peso ! Será para ganhar um cantinho no céu, à custa de sacrifícios ?


O contrário também se verifica (embora em muito menor grau, já se vê, e – como é óbvio ! – está fora do quadro sintomático da nossa patologia em análise): dizer bem de um suposto inimigo, adoptando a frasezita: « Nunca gramei esse sujeito, mas não deixo de reconhecer que é um tipo vertical… »


A que podemos atribuir esta estranha reversibilidade de papéis ? A uma dessincronização entre afecto e razão, e então, neste caso, o doente – coitadinho !-  não tem culpa de gostar tanto de gente tão odiosa e estapafúrdia como são os trastes dos amigos que tem, porque o coração tem razões que a razão desconhece, já diz o outro. No entanto, esta hipótese científica acabadinha agora mesmo de sair do forno, perdão, do tubo de ensaio mental, sofre já de problemáticas. É que quando chega o amigo do doente, tão maltratado por este anteriormente no seu discurso de maledicência, muda o disco – mas não toca o mesmo, não senhor ! E volta a ser o « amigalhaço », o « gajo porreiro », o « sabes que sempre gostei de ti, Manel ? »


A verdade é que quem sofre desta patologia tem uma ambição na vida – escalar (não a montanha do Pico, mas outras que, sendo tão materiais quanto essa, são de cariz mais económico). Consequentemente, como a economia é o que há de mais flutuante e instável neste mundo em que vivemos, nunca se sabe bem quem vai subir ou descer… Logo, o doente (que é hipócrita, sim, mas não é tolo !) não pode exprimir as suas reais opiniões abertamente, cultivando sempre a fidelidade a si próprio, mantendo-se à tona de água através dos esquemas que lhe permitem estar « de bem com toda a gente ».


Assim, estes doentes são, regra geral, « tipos fixes »  cujos companheiros em corrente dão a volta aos Açores dezenas de vezes… Pena é que não se comportem como amigos, desconhecendo o conceito essencial de « lealdade ». Claro que a insistente dor na junção do braço com o antebraço incomoda e não deixa pensar (nem sentir muito para além da dita…), pelo que é compreensível que os conceitos se esfumem ! É como pedir a alguém com uma enxaqueca persistente que recite Os Lusíadas.


Outra manha é a de fingirem que não estavam a falar do amigo A, mas sim do amigo B quando disseram a atrocidade Z : « Ó António ! Mas tu achas que eu ia dizer uma coisa dessas acerca de ti, eu que respeito tanto o teu trabalho e a tua conduta ?! Claro que aquilo que eu disse era a respeito da Ana, pá ! Toda a gente que estava ali percebeu, só tu é que não queres ver… »  Daí que os que sofrem deste mal tenham sempre o cuidado de evitar situações muito concretas, e prefiram que sejam os seus interlocutores a pronunciar nomes próprios ; dizem, quase sempre, « ele » e « ela » - que seria desta gente se se banissem os pronomes pessoais de sujeito ?


Entretanto, a epidemia continua a fazer vítimas. Tanto que a desconfiança surge entre amigos como um bichinho roedor, uma destruidora (talvez uma térmita, bicho que anda na moda e anda agora a ser estudado por cá). Até mesmo quando uma pessoa escreve uma simples opinião, logo se levantam sobrancelhas e lhe perguntam : « Ouve lá, Albina, aquilo… por acaso… não seria para mim, não ?! »



Thursday, August 10, 2006

O Turismo que Temos

O que se ouve dizer é que os Açores estão todos virados para o turismo. Houve a época da planta tintureira, a da laranja, a das vaquinhas (e ainda estão por aí, oh quantas!...) e agora – vou, elegantemente, fazer o salto no tempo de alguns booms económicos, porque se não sou historiadora tão pouco sou economista! -  quer-se apostar no turismo. Palmas.


Para perceber porque é que não temos mais turistas, convém sair dos Açores e voltar como se fosse turista, que é o mesmo que dizer como se não se soubesse do que é que a casa gasta. Na verdade, nem é preciso sair porque o bom português está sempre pronto a reclamar do que vê no seu país, quanto mais na sua região, na sua ilha brada aos céus (repare-se que um português insulta outro dizendo “essa tua atitude é mesmo portuguesa!”, frase que prova que o nacionalismo por cá nunca há-de vingar!)  não sendo de estranhar, por isso, que o turista – quantas vezes mais delicado e mais sorridente- também vá enfiando a sua farpa, murmurada noutro idioma.


Não pretendo com isto fazer a apologia desses senhores de sandália com peúga, não!  Bem sei que há muitos turistas a quem apetece apertar o pescoço, sobretudo quando começam a perguntar “porque é que não há aqui o doce de laranja igual ao doce que se faz na Suécia?” e se não temos “trufas negras para acompanhar o bife de porco, porque toda a gente sabe que só se pode comer bife de porco com trufas e é uma porcaria se não se come dessa maneira!”


Pessoalmente, quando vou a outro país, procuro as tradições e costumes desse lugar novo onde estou. Acredito que conhecer um sítio é, também, conhecer os cheiros, a comida, as danças, a música, as pessoas desse mundo novo e não só as paisagens e os museus. Se fosse só por isso, comprava um livro de fotografias e até me cansava menos. No entanto, é assombroso o número de pessoas que, quando viaja, espera encontrar a sua vidinha noutro lugar! Irritam-se por não verem a comida temperadinha com as mesmas especiarias e perguntam por marcas de vinhos que a gente nem sonha (ao que apetece responder, de imediato, “beba vinho do Pico que fica mais bem servido!”). Deste mesmo mal, sofrem muitos portugueses quando vão de férias, o mal de quererem levar a Pátria consigo, dentro de uma mochila de campismo. Essa Pátria da qual ainda há dois minutos diziam raios e coriscos, agora vai bem embrulhada na forma de pastéis de bacalhau (porque não se sabe se nessas terras do demo os fazem), de revistas mil, e até de papel higiénico (porque há certos países que não são tão limpinhos como o nosso... neste ponto, têm razão, mas adiante).


O certo é que se queremos turistas, temos de nos vender. Isto dito assim, parece mal, mas é verdade. Há que engolir uns quantos sapos, sorrir sempre e ter muita paciência. São turistas, não sabem a sua mão direita. Mas nós é que precisamos deles, a ver se entendemos isto.


Vamos pôr-nos outra vez na pele do turista, o que não é difícil – já sabemos que não há quem se sinta mais estrangeiro do que um português em Portugal (até há os que falam mal português e tudo!). Repare-se na cara de má-disposição que uma pessoa encontra quando vai a um estabelecimento. Longe vão os tempos em que se dizia “Bom dia!” Isso é que era! Agora, temos muita sorte se apanhamos um sorriso, ainda que breve, de quem serve. Regra geral, está tudo com uma fronha de ressaca. Nós é que fazemos o favor de ir ali comprar /comer/ dormir! Que fique desde já esclarecido, nem pio, venha o próximo da fila.


Os transportes são um drama.Certo, estamos em ilhas. Dependemos dos aviões e dos barcos. Não vou por aí, porque todos sabemos como dói voar (monetariamente) e nem sempre se pode andar no mar (dado que não há barcos no Inverno entre todas as ilhas). Depois de chegar à ilha em questão, qualquer que ela seja, o turista está absolutamente preso na cidade onde vai ficar. Os transportes terrestres são muito escassos e sem horário (muito) fixo. Ao fim-de-semana, então, nem pensar em sair da cidade, que ideia!... A não ser que se esteja disposto a pagar um balúrdio por um táxi.


A verdade é que qualquer cidade açoriana se vê num dia (um iluminado está a pensar, neste instante que Ponta Delgada oferece a possibilidade de ir fazer compras ao Parque Atlântico, mas centros comerciais existem em todo o mundo. Certo é que este tem uma baleia artificial como enfeite, mas estou em crer que baleias destas só são interessantes para quem nunca viu uma baleia real). Depois desse dia, procura-se a natureza, as paisagens, que são, enfim, aquilo que os Açores têm para oferecer de diferente e de genuíno.


 Sim, porque quem quer praias tórridas vai para o calor intenso das Caríbas ou do Mediterrâneo; quem quer neve, vai ao Norte. Não será o nosso clima incerto que vai atrair turistas. Não será a nossa História que, por mais interessante, não bate o Renascimento italiano ou a Grécia Antiga. Só nos podemos valer da natureza ainda agreste, do mar ainda puro e da simpatia que ainda resta nos olhos e mãos do povo. Assim, não vale de nada  construir dezenas de unidades hoteleiras para prender as pessoas numa cidade sem lhes dar um sistema de trasnportes em conformidade para que possam explorar o campo.


Os gregos, que vivem do turismo, são quase brutais no ataque ao turista. Vamos na rua e há criaturas que surgem de todos os lados a perguntar se não queremos experimentar o prato tradicional (do qual nunca é revelado muito), a baklava, ou se não queremos fazer uma excursão não sei onde. Todo o bocado de rocha, feio e tosco, saíu, de certeza, do Pártenon. O Olimpo multiplicou-se numa miríade de deuses e deusas em miniatura que todo o turista compra – eu própria fui ingenuamente levada na conversa de comprar uma deusa da água (duvidando muito da sua existência) porque “era mesmo parecida comigo!” segundo o vendedor - todos os que me lêem saberão que tenho muito pouco de deusa...


Outro aspecto muito nosso é a sorna domingueira. Ao Domingo, fecha tudo. O turista pensa que está numa cidade fantasma. Não há nada para fazer! Qualquer cidade que pensa fazer do turismo um negócio, tem tudo aberto ao Domingo. Ou então, deixamos de brincar com esta ideia do turismo e assumimos que não temos vocação para receber gente e que essa coisa de “cidade hospitaleira” é só uma semana por ano.


Thursday, July 20, 2006

Em Busca de um Fio…

El Gran Laberinto, o novo livro de Fernando Savater, é um romance de aventuras juvenil. Este rótulo – é necessário enquadrar o que se escreve num género qualquer, para agradar aos teóricos e confortar os entrevistadores (e vice-versa!) – é explicado pelo autor: “Um livro que só agrade a uma criança não vale a pena nem para a criança. A literatura juvenil é aquela que também pode agradar aos jovens.” Fã incondicional de Júlio Verne, de R. L. Stevenson e de todos os relatos iniciáticos que marcam os anos inquietantes de aventura e descoberta adolescente, este catedrático de Ética da Universidad Complutense de Madrid opina que escrever para jovens obriga a renunciar aos artifícios pedantes de que geralmente se socorre um escritor: “Podes impressionar um adulto com uma citação de Habermas ou de Popper, mas um puto de 13 anos não se impressiona minimamente. Tens de te defender com as tuas próprias armas. Não te podes esconder em truques eruditos. Os jovens obrigam-te a seres directo, e isso faz com o que escrevas valha por si mesmo. Deitas fora as tuas muletas culturais. Nós, os do mundo académico, temos muitas vezes essa tendência: a de nos refugiarmos atrás das citações. São muralhas! È por isso que gosto tanto deste exercício – fico com o corpo  a descoberto.”


Savater é muito conhecido pelos seus livros La infancia recuperada, Ética para Amador e Politica para Amador, todos eles com uma dimensão pedagógica acentuada. Educar é, para este professor, algo de apaixonante e não uma tortura, pelo que faz sentido passar essa mensagem nas suas obras. Entenda-se “educar” como “aproximar as ideias das pessoas para que possam ser melhor compreendidas” e não a filosofia discursiva de uma elite ou a massificação de um didactismo aborrecido. Aliás, a literatura pressupõe-se divertida. O próprio Savater confessa ser, como José Luís Borges, um leitor hedónico, que não seria nada mais se lhe pagassem somente para viver lendo: “A leitura é, em primeiro lugar, um prazer e os prazeres não se impõem, comunicam-se por contágio.O prazer da leitura tem de ser contagiante.”


A ideia de El Gran Laberinto foge à noção estrutural de um romance deste sub-género (na época pós-moderna, à falta de melhor adjectivação para o casino temporal em que vivemos, ainda subsistirão estes esquemas?) -  a intenção do autor era construí-lo como se fosse um vídeo-jogo. De facto, foi a sua mulher, aficcionada dos vídeo-jogos e já cansada das críticas que se faziam a quem passava a vida de comando na mão, quem lhe deu a ideia: em vez de criticar tanto o pessoal fã dos jogos de computador, e de dizer que os putos não lêem e são uns viciados do ecrã, porque não tentar fazer um romance juvenil de aventuras que lhes desse exactamente o que lhes dão os vídeo-jogos – aventura, risco, o poder de decidir, de escolher, a febre da luta, a ultrapassagem de si mesmos e a glória de um objectivo final?


Savater entendeu que todo o vídeo-jogo não é mais que uma forma de mecanismo iniciático e, no fundo, de educação – fonte de experiência através de determinadas passagens e consultas, daí que agrade tanto ao adolescente. Com uma certa perícia, chega-se à glória; quando não, não há recompensa. São uma forma imaginativa de recuperar histórias. Para tempos diferentes, um modo diferente de narração.


El Gran Laberinto pretende ser, assim, um multimédia convertido em romance, em que cada viagem das personagens trata de um problema actual – o fanatismo religioso, a violência sobre os mais fracos, a ciência ao serviço da guerra, etc. Isto porque o autor acredita que a literatura é, a seu modo, uma espécie de farmácia, na qual há remédios para todas as doenças, basta procurarmos. Preocupa-o, de modo particular, a questão dos nacionalismos (Savater é natural do País Basco, sofreu variadas agressões na sua região e, assinale-se, venceu o Prémio Sakharov de Direitos Humanos). Segundo ele, “o problema dos nacionalismos não é um problema real como a fome, a educação ou o desemprego. Não são os territórios que têm direitos, mas sim os cidadãos. E é com os cidadãos, não com os territórios, que devemos preocupar-nos.” A mesma posição assume em relação à língua: “São os falantes que têm direito à língua, não as línguas que têm direito a procurar falantes. Se os falantes decidem falar outra, têm esse direito. Os nacionalismos crêem que tudo tem direitos, excepto as pessoas.”


Para este educador, as pessoas e o seu viver são o mais importante. Assim, ele gostaria que os seus livros fossem pontos de partida e não de chegada. Partidas para outras leituras, outros prazeres. É por isso que há tantas referências e pistas para um leitor atento.


El Gran Laberinto não deixa de ser polémico, sobretudo por se coadunar com a internet, de certa forma. Savater crê que não podemos negar a modernidade. Para ele, “ler é ler um livro” e nada retira o prazer do papel. Mas é compreensível que outras gerações tenham outros interesses porque nasceram dentro de outro espectro de circunstâncias: “O que é preciso é conservar vivo o prazer que a leitura encerra. Pensemos que muitos dos nossos antepassados, tão importantes intelectualmente, nunca tiveram um livro, em sentido moderno - Séneca, Aristóteles... nunca leram nenhum.”


Mas isso de ler não é fugir a uma vida, a um viver no sentido verdadeiro do verbo? Savater diz-nos que “as coisas mais belas, como o amor, como a religião, têm sido tremendamente mal usadas. Com a literatura, pode acontecer o mesmo.”


Wednesday, June 28, 2006

O Futebol é Assim...


Grosso modo, os portugueses podem dividir-se em dois grupos: os que gostam de futebol e os que até nem se importam com futebol mas vão vendo quando calha, nomeadamente (advérbio caríssimo aos comentadores desportivos!) quando a Selecção Nacional joga. Já a diferença entre aqueles que percebem de futebol e os que não percebem nada disso é irrelevante, pois, como é do conhecimento geral, todos os do primeiro grupo (os que gostam de futebol), são especialistas soberanos na matéria.


Portugal tem cerca de 6500 treinadores de futebol potenciais. Estão por todo o lado, mas o local preferencial de encontro é o café da esquina. Não havendo café e estando sol, a  esquina também serve.


É por esta razão que é tão difícil ser “treinador de facto”, já que toda a gente julga saber do negócio e, o que é mais importante ainda, está genuinamente interessada nele. Deve ser por isso que pagam tanto aos treinadores, coitados, para que possam aguentar a pressão vinda de tantos quadrantes. Pobres vítimas sociais! Em breve, haverá uma neurose denominada “Síndroma do treinador” se continuarmos a pressioná-los de forma tão inumana.


Ser jogador é mais fácil, porque a popularidade de um jogador é para o bem e para o mal. Tanto são elevados a heróis nacionais como subjugados a grandes estupores que não merecem a relva que pisam e deviam era comê-la (tudo depende, claro, do resultado do jogo). Excepção feita aos guarda-redes: os homens da baliza são uns marginais que nem na própria equipa se enquadram; estão sempre à parte, porque não são tidos para as vitórias mas são sempre lembrados nas derrotas. A única altura em que alguém se lembra dos guarda-redes com uma pontinha de orgulho é quando defendem uma grande-penalidade e, mesmo assim, logo chovem uma data de frases, como a célebre (e injusta): “Um penalty não se defende, marca-se” (outro chavão que confesso não saber quem disse originalmente, mas logo foi copiado por  todos os comentadores desportivos e treinadores de bancada, incessantemente, até hoje). Não há direito. Assim, não há miúdos que queiram ser guarda-redes. Os putos são forçados a irem para a baliza  nas escolas, porque não há ninguém que queira ir apanhar com as frustrações rematadas de toda a gente. Por outro lado, todos sonham em ser “jogadores de campo” (expressão giríssima, como se o o guarda-redes não estivesse em campo, mas na bancada ou na pastelaria em frente, debicando uma nata e bebendo um café durante os 90 minutos).


Pior que ser guarda-redes é ser árbitro. Ninguém, de nenhuma equipa, tem simpatia pelo árbitro. Está contra nós, foi, de certeza, subornado pelos outros, e – para cúmulo! – é muito claro que não sabe as regras. Qualquer adepto sabe mil vezes mais de futebol que o árbitro. É a ignorância dele que irrita, aliada à insegurança portuguesa e àquela pontinha de desconfiança que faz todos acreditarem que aquele “caramelo” só pode ter sido levado pela outra equipa a acabar connosco. Bandido! O mundo sempre esteve contra nós. Até admira como é que chegámos tão longe no Europeu. Ninguém nos ama e nós (pobrezinhos mas honrados) não compramos árbitros; não baixamos o nível como essa gente (os outros todos, todos).


Há uma série de mitos em relação ao futebol que importa fazer cair. O primeiro é que as mulheres percebem menos de futebol que os homens e que, quando vêem futebol, o fazem para observar os jogadores. Isto só pode ser uma ideia masculina, porque qualquer mulher com uma visão 20/20 sabe que os actuais jogadores deixam muito a desejar (deixar a desejar é o termo certo porque não há desejo que se acenda com uma observação dos ditos). Reparem no ar de menino-bem de alguns jogadores de agora, e no modo como passam a mãozinha pelo cabelinho. Apetece mandá-los mudar o sapatinho e irem jogar golfe, com os respectivos caddies. Depois, misturam o ar de rapaz-da-Linha-sei-lá com a escarradela para o chão a toda a hora (mesmo depois do jogo já ter acabado). Logo, não estou a ver a que propósito é que alguém se há-de encantar com semelhantes espécimes. Há poucos anos, havia jogadores giros, mas esfumaram-se. Paciência. Não se pode ter sempre uma equipa que cative turistas.


Outro mito é que o pessoal ligado ao futebol é pouco inteligente e dá respostas estúpidas. Em boa verdade, também só lhes fazem perguntas cretinas, que não são passíveis de boas respostas. Nunca esqueci estas: “Como é que se sente?” (feita a um jogador, vítima de fractura exposta, quando o infeliz estava a sair de maca); “O que acha de ter passado de besta a bestial?” (muito acertadamente respondida “já não é a primeira vez!”); “O que vai fazer para dentro do campo?” (feita a um avançado que entrou quando a sua equipa estava a perder). Não pode ser! Estupidificam-se os senhores e depois faz-se troça deles.


Há ainda a ideia de que os intelectuais portugueses não gostam de futebol, a não ser que o digam por motivos políticos. Na verdade, a maior parte gosta, mas carrega más memórias da escola, onde os tratavam mal porque eles não sabiam jogar. Reparem que a elite nunca é do Benfica, clube plebeu e de massas que, ainda por cima, fica geograficamente perto da Amadora, da Damaia e de todas essas zonas duvidosas onde o pessoal não usa gravata. Quando muito, usa navalha. A elite é do Sporting, muito mais Lumiar, Telheiras e sempre em festa. Do Porto, nem falo, porque todos sabemos que o dragão é uma coisa mitológica e não existe.


Porém, agora, somos todos portugueses e estamos com a selecção. Mesmo o pessoal cheio de ideias independentistas para os Açores, agora é orgulhosamente português. Embora não haja açoriano que não goste mais do Pauleta que dos outros jogadores... provavelmente porque ele, apesar de super estrela, é sempre o rapaz simpático, vizinho aqui do lado.   


Friday, June 9, 2006

A Cultura, essa Especialidade Geral



Não se sabe bem quando é que começou a aparecer em vários senhores e senhoras a “febre da cultura”, mas suspeita-se que seja contagiosa, porque tem atacado imensa gente que até há poucos meses nem sabia (o exemplo é arbitrário) distinguir um Picasso de um Monet - com este remate ficam a perceber que este texto não é sobre a cultura dos campos, e também podia ser, que a “cultura” em si tanto nutre corpos como espíritos (a prová-lo está a etimologia da palavra).  A febre de que falo bem podia ser uma  epidemia saborosa (passem por cima do paradoxo, se fazem favor, e vamos ao que interessa!)  que isto de se remeter os assuntos culturais para meia dúzia de iluminados pensadores e ilustres artistas, curiosamente sempre dentro da mesma roda de amigos (?), ora agora apresento eu o teu livro e amanhã fazes tu o prefácio para o meu,  cansa muito, é redutora e o cidadão dito comum não é parvo (enfim, alguns são mesmo idiotas, mas já sabem que tenho de falar no geral, não é?). Dizia eu, porém,  que a tal febre, infelizmente, é uma coisa por demais aflitiva, e quase se diria anti-cultural.


Podia, agora, pretensiosamente, encher umas páginas com várias definições de “o que é a cultura”, cedendo aos hábitos de docente, mas ficam os leitores deste jornal muito mais bem servidos se forem procurar por si próprios em Edward Taylor, Ernst Cassirer, Ortega y Gasset, por exemplo (e fico por aqui, porque é quase Verão e estas leituras não combinam com cerveja).


Convencionou-se que “cultura” é “tudo”. Depreendeu-se que, já que é “o conjunto dos produtos, dos actos e processos especificamente humanos” (Francisco Romero, uma definição possível), então cabe tudo lá dentro – com perdão da frase! Ora, já que é “tudo”, “qualquer um” (eu, tu, a vizinha Maria e o gato dela, o sr. Dr. Pancrácio deputado e o sobrinho dentista mais-a-menina-que-está-tirando-um-dente-e-tem-a-boca-aberta) pode opinar sobre isso. Isso o quê? Pois, isso tudo. Chamemos a senhora que vende uvas, a mulher do deputado e um assessor de imprensa e façamos um debate.


Agora vem a parte pior. Nos debates ninguém discute ideias. Dá-se um parecer - como na função pública-, tem-se um outro olhar - expressão tão na moda que todos os utilizadores de óculos se sentem, de repente, muito mais charmosos e importantes-,  dizem-se opiniões pessoalíssimas (e, como é sabido, cada qual tem a sua, sendo a da vizinha Maria tão válida, enquanto pessoa, como a do Pancrácio e a da menina-da-boca-aberta). Se tudo o que fazem é dar opiniões enquanto cidadãos e não especialistas em determinado assunto, então podemos todos dar opinião, viva, viva, eu também quero e o menino que está ali na Praça da República também tem algo de interessante a acrescentar a este tema e à problemática da questão. As construções com que mais se começam frases são “Eu acho que... Julgo que... Há aspectos importantes a ressalvar aqui, na minha opinião... Tenho ideia que...”  Se analisarmos bem a coisa aquele “Eu acho que... “ equivale a que não se percebe nada do assunto, mas lá ter-se uma opinião sobre ele, isso não falha! Os próprios jornalistas – manhosos! – já perguntam: “O que é que o senhor ministro acha disto?”, encurralando o infeliz na opinião de trazer por casa. Apetece responder “Cheira-me que a sra. jornalista é capaz de ter razão!” No fundo, ninguém percebe nada dos assuntos de que debita, mas o importante é nunca dizer “Não sei” e, sobretudo, emitir uma opinião porque há muita gente com o receptor ligado. Além disso, sofre-se de uma grande falta de conclusões verdadeiramente pessoais, o que é muito, mas muito mais grave. Grande parte das ideias são roubadas do Reader’s Digest, do vizinho, da internet que se devora, do que se ouviu dizer no café.


Antigamente, éramos um país de poetas. Hoje, não. Somos um país de pensantes (e não pensadores, coisa que implica que pensamos realmente quase todos e, como disse acima, isso é que era doce!) e, o que é mais, de pensantes cultos, especialistas em generalidades  - atenção ao contra-senso! - e que procuram subsidíos para a publicação de livros e a pintura de quadros (ainda não chegou a febre à música e à dança, mas o dia aproxima-se a passos larguíssimos!).  Todos conhecemos algumas destas obras sublimes: quadros que, por pudor, não confessamos serem tal e qual os desenhos que o nosso filho fazia na creche, acompanhados de títulos sonantes, do estilo “O Obscuro Impossível” ou “ Depois do Mito, o Feminino Esplendor” (estes inventei-os agora; rezo para que não sejam cartaz de nenhum pós-moderno!); livros de poem(inh)as, em que o “amor” por uma bela “flor” está sempre repleto de “dor” num tempo de “calor” (estes livros são um horror, mas o autor – perdão por tanta rima! – já se julga um Nemésio ou um Antero, porque são os dois únicos poetas açorianos que ele conhece, fora a Natália porque foi deputada).  Há ainda outro estilo, mais em voga nos auto-denominados novos intelectuais, que consiste numa página quase em branco com excepção de duas linhas de poema no fim da página, linhas essas de grande rebuscamento lexical, mas que, espremidinhas, são muito menos avassaladoras que um “ditado” da minha avó (salta a malta da cultura popular a lembrar que isso também é cultura!).


No fundo, o que  assusta é o afundamento da cultura, ao se pretender elevá-la. Seria desejável que assim fosse e que a sociedade partilhasse conhecimentos e experiências. Mas não parece que seja isso o que se procura nem o que está a acontecer. O Homem culto reflecte, tenta estabelecer relações, questiona, problematiza, mas as suas conclusões são provisórias, porque este mundo onde estamos todos - sim, todos! - não tem as certezas absolutas, as conclusões paginadas que os devoradores de enciclopédias (via net, por ser mais moderno)  e os debitadores de “a mim, parece-me que...” nos querem fazer engolir.


Thursday, May 25, 2006

Era Uma Vez...

Imbuída da maior boa vontade, decidi separar alguns dos livros que lia em criança para dar a uns miúdos que conheço e que gostam de ler. Isso de dizerem que os putos não gostam de ler é uma mentirada de todo o tamanho – a maior parte das bibliotecas infanto-juvenis têm mais adeptos do que as bibliotecas reservadas aos adultos e só isso já seria prova suficiente; claro que houve, há e sempre haverá crianças que não gostam, mas também não podemos ser todos iguais.


Os meus livros eram intemporais, coisas como a parafernália aventureira dos Cinco, dos Sete e outros em que a criançada come alarvemente grandes jantares e almoços ao ar livre, descobre, por intuição e esperteza congénitas, ladrões e contrabandistas muito mais depressa do que os totós da autoridade vigente, anseia pelas férias para ir acampar com o cão  perto de faróis e rochedos e anda de bicicleta a mil à hora. Logo, livros que contam coisas verosímeis, susceptíveis de acontecer a qualquer tipo que tem entre 10 a 12 anos. Além disso, lembro-me perfeitamente que os pais destes heróis eram pessoas muito fora da realidade, sendo um deles até um cientista que não sabia que andava neste mundo, apesar de ser invulgarmente inteligente. Tal e qual a imagem que uma criança tem dos pais.


Infelizmente, tive de pôr de parte estas extraordinárias sagas, porque os putos a quem eu ia dar os livros eram bem mais novos e não liam livros com tantas páginas. Virei-me, assim, para os contos de encantar de Grimm e de Perrault. Com honestidade, deviam ser chamados contos de terror, tal é o grau de violência que encontrei naquelas páginas ao fim de tantos anos – assassinatos (neste particular, há de tudo, de fraticídios a parricídios, passando pelas outras variantes), canibalismo, mutilações, e um não acabar de cenas que fazem arrepiar os cabelos! Não sei como podia eu ter um sono  descansadinho todas as noites, depois de ler uma historiazinha destas (“para dormir melhor”, meu Deus!).


Hansel e Gretel, por exemplo. Todos sabemos do que se trata: os pais  vêem-se na penúria  e decidem abandonar os filhos na floresta; eles, espertos, ouvem a conversa por acaso e tentam marcar o caminho com migalhas de pão que os passarinhos acabam por comer. Imaginem o sufoco que não terei tido, depois de ler este conto, quando ouvi discutir os problemas económicos lá de casa. Decerto nunca mais me senti confortável ao visitar o parque florestal do Capelo, intimamente pensando “é desta que fico atrás e não tenho irmãos mais velhos nem trouxe pão”. Felizmente, do Capelo até à Horta, seria fácil descobrir o caminho...


Polegarzinha, outro conto arrepiante. Nasceu de uma flor, sendo filha de uma senhora que desejava muito ter um filho. “Toma lá esta”, diz-lhe a fada. E a pobre da senhora tem de agradecer e tratar de uma filha do tamanho de um polegar! Não há direito! Isso é que há, segundo a moral da história, porque a senhora devia aprender a não desejar coisas para além do que a natureza lhe pode dar... A pobre da Polegarzinha ainda sofre mais do que a mãe; a certa altura, arranjam-lhe casamento com uma toupeira. Felizmente, tudo acaba como deve ser, claro. Isto dos humanos casarem com animais não é único deste conto, aliás, embora nunca seja explicado como é que as núpcias se processavam: A Bela e o Monstro, A Princesa e o Sapo, entre outros. Aliás, provavelmente, são as núpcias o único aspecto não explorado dos contos de fadas. Depois de viverem felizes para sempre, não há mais nada a acrescentar.


Porém, se não se pode falar de sexo, a violência não é um problema. Há uma carnificina quase constante e grandes chantagens psicológicas: bichos ardilosos atacam, como n’O Capuchinho Vermelho, perfídias angustiantes duram toda uma vida, como a miserável existência da Cinderela, famílias que nos odeiam e o mundo todo contra nós como o pobre Patinho Feio, gigantes que comem crianças e por aí fora. Acresce que nenhuma menina olhará com bons olhos uma madrasta depois de ler - e isto é só um exemplo - Branca de Neve, onde a malvada até o coração da enteada quis ter!... E já nem vou falar da fatal injecção que é para uma menina a ideia do Príncipe que nos há-de livrar dessas desgraças todas e que aparece em (quase) todas as histórias – compiladas por homens, claro!


Em todo o caso, como bem sabemos, os miúdos percepcionam o mundo de um modo completamente diferente dos adultos.Assim, “num primeiro nível, os contos de fadas ensinam pouco sobre a sociedade” tal como ela é hoje; mas ensinam muito “àcerca dos nossos conflitos interiores e soluções acertadas para estes” (Bettelheim). É por isso que continuam a ser tão populares – são terapêuticos e contêm a promessa de que o melhor ainda está para chegar: vamos ter todos um final feliz, mesmo que passemos muitas desventuras. Ou, por outras palavras, acaba tudo bem – se não estamos bem, é porque ainda não chegámos ao fim. 


Thursday, May 11, 2006

Isso de Ser Jovem

Ser jovem é um grande quebra-cabeças. Atenção que não estou a falar do pessoal da minha idade – os jovens na ressaca, os que “ainda” são jovens e estão a gastar aqueles últimos oportunos cartuchos da casa dos vinte anos antes de entrarem nos trinta, para passarem à fase do “subsídio”, conhecida por bancos, empresas e outros, e que, etariamente, se define por “jovem até aos 35 anos”. A partir daí, já não há juventude para ninguém, a não ser a de espírito. Não, nestas linhas estou mesmo a referir-me aos desgraçados dos adolescentes.


 Toda a gente fala com saudade do tempo em que era jovem e andava no liceu, sobretudo os pais de quem lá anda a penar agora. Estarão todos doidos? Até admira como é que se conseguiu resistir a tanta dor de alma, a tanta borbulha pungente e a tanta coisa secretamente nova, que aparecia de todos os lados. Além disso, o mundo, em geral, não ajuda nada os jovens; está repleto de ditadores, vulgo pais, professores, porteiros de discotecas, gajos que não nos deixam acampar onde a gente quer, etc, etc, etc. Isto para já não falar da falta de dinheiro gritante (porque não se ganha nenhum, claro) e do incómodo que é estar sempre a pedir aos progenitores uns trocos e ter de lhes dizer “para que é” e ouvir “vê lá não gastes isso tudo”... Uma pessoa pensa que, quando for mais velho, vai desforrar-se da vida e há-de ter muito mais dinheiro. Depois cresce e percebe que continua na miséria porque tem um emprego de treta e está cheio de contas para pagar. A diferença é que antes podíamos culpar os nossos ditadores de estimação por quase tudo o que nos acontecia (excepto casos de frustação amorosa, o que já era um grande rol...). Agora, não. Já nada nos salva. Espero, ansiosamente, pelos meus filhos, para os torturar com todas estas quezílias, segundo o bom método universal de “farás como te fizeram a ti”.


Tão ou mais importante é a ideia de liberdade. O que é que quer um adolescente? Quatro em cada cinco irá responder que quer mais liberdade. “Isso é que era bom”, diz o pai (ou a mãe, ou quem quer que tenha direitos de paternidade sobre o dito, que isto, hoje em dia, não é nada linear...). “Vens é para casa cedo, não bebas mais do que deves, diz-me lá com quem é que vais estar, e quem é que é essa gente, nunca ouvi falar deles...”, enquanto levantam a sobrancelha esquerda. Os pais, no fundo, querem é que os filhos tenham juízo. Eles, pais, não têm, mas toda a gente sabe que os pais desejam que os filhos sejam melhores do que eles. É justo, por isso que estas elevadas aspirações estejam enraízadas em todos.


Há um truque que todos os adolescentes têm tendência a usar, que é o mais que batido: “Pai, mas o pai do Miguel nunca faz essas perguntas, sou só eu que tenho de passar por isto.”  Amigos, não vão por aí. Secretamente, os vossos pais estão convencidos que são melhores pais que os outros todos. Os pais do Miguel, da Luisinha e da Cristina são uns desleixados e sempre foram tansos e está-se mesmo a ver que a desgraça lhes vai bater à porta. A desgraça virá, fatalmente, na forma de uns filhos mais que terríveis. O que é isso? Uns filhos de quem toda a gente fala! O melhor, para um pai, é ter um filho quase incógnito (para um filho também convém ter um pai low profile, mas isso o pai nunca suspeita...)


Ao fazer 18 anos, um jovem está convencido que alcança a glória. Desiludam-se. Fica tudo igual. Excepto o facto de poderem tirar carta e de serem presos quando infringirem a lei, não há muitas mais mudanças. Há outro importante facto, que é o de poderem votar, de modo que, a partir desse dia, fazem parte desse grande público que os partidos políticos designam como “Jovem” (com J maiúsculo, para causar impacto), e são, por isso, atacados por todas as frentes com slogans como “Jovem, junta-te a nós” ou “Jovem, estamos a par dos teus problemas” ou ainda “Jovem, vem construir o teu futuro” e outras banalidades do estilo. Passam a ser considerados como um “importante contributo social” só porque têm mais um dia no calendário. Antes desse dia em que podiam fazer cruzes nos boletins de voto, a preocupação com os jovens (vocês) não valia um chavo.


Outra fascinante mudança é terem de começar a pensar “o que é que vão fazer na vida”, como se não fosse a vida, na maior parte dos casos, a decidir o que vai fazer convosco. A maior parte das escolhas são saborosamente fruto de um acaso.


Dizer “os jovens”, no entanto, soa a tolice. É como dizer “os homens”” ou “os portugueses” – logo, uma generalização perigosíssima. Apesar de tudo, ainda acho que a juventude é capaz de ser a altura mais gira da vida. Ou então, não.

Thursday, April 20, 2006

As Palavras Embrulhadas em Papel de Prenda

Trabalho num lugar cheio de regras de “boa educação”- como todos, pensam vocês. Isso é que era doce! Há certos lugares onde se podem largar uns palavrões se, por acidente, tropeçamos no tapete e batemos com a canela na esquina da mesa; há outros ambientes onde qualquer palavra mais “solta” é encarada com um olhar ríspido e uma tossezinha seca e outros, ainda, onde a palavra proferida chega a manchete de jornal. Para além de trabalhar num sítio onde devemos ter cuidado com a língua (esta frase tem um sentido duplo, porque, de facto, temos mesmo de ter cuidado com o modo como usamos a língua, dado que todo o erro linguístico que façamos pode ser usado contra nós - “Então, a sra Prof. não  sabia que isto se dizia assim? Louvado!”  - Então?! Julgavam que o sentido duplo era o quê? Suas mentes perversas!), trabalho num país obcecado por regras. Em Portugal, as pessoas são mais libertas de preconceitos, apesar do que se pensa. Todos sabemos que um dos passatempos preferidos dos portugueses é criticar Portugal. Quantos países vocês conhecem que se auto-criticam tanto? Ah, pois é.


Todo este preâmbulo para chegar à estória das palavras. A minha colega tinha tido um dia mau. Quando chegou ao escritório, o computador não funcionava, para cúmulo. Ela soltou um:“What the f*ck is going on with this computer?!” que paralisou sete pessoas, em instantâneo. A infeliz ficou gelada, porque se deu conta que tinha lançado uma palavra proibida. Foi preciso substituir a coisa por um: “Something is wrong with our IT services today, gentlemen.” Suspiraram todos, de alívio. Bom, já se podia trabalhar em sossego. Ela dourou aquela pílula.


Claro, todos conhecemos o “dourar” da palavra. Às vezes, a mensagem fica tão críptica e cifrada que quase necessitamos de um dicionário (mais um diconário de sinónimos, excelente ferramenta que não me canso de aconselhar!) para decifrar o que quer dizer o emissor. Infelizmente, nem sempre temos tempo - para não falar do incómodo que é andar com essas coisas pesadíssimas – para estas manobras de detective, sobretudo quando o discurso é, todo ele, complexo e emaranhado, e não tem ponta de simplicidade nem do que se costuma chamar sumo. Como – e eis um exemplo inocente para que todos possamos compreender - os discursos dos candidados em época eleitoral. Neste caso, resta-nos dizer um “ah”de entendedor no fim, como se tivéssemos, efectivamente, percebido e, mais tarde, tentar compreender algo da alagaraviada apressada – porém repleta de palvaras distintas e sonantes – que nos foi martelada. Digo, enviada. Isto, claro, se ainda nos lembrarmos dela.


Há ocasiões – como nas conferências, por exemplo – em que se nos pusermos a analisar (se não nos der sono...) a verdadeira mensagem dos participantes, chegamos à triste conclusão que cerca de 70% por cento dos conferencistas tem um conteúdo muito pobre... mas um discurso cheio do que antigamente (na boa e directa linguagem dos nossos avós) se chamava “palavras de dez mil escudos!”. Não nos estão a dizer nada de particularmente inteligente, nem seguramente nada de original... mas o embrulho é furta-cores berrante, o laço de fita é colorido e, sobretudo, faz um estardalhaço a abrir. Palmas no fim.


Com tanto douramento de palavras, imagino já que no futuro isto se estenda a toda a população. Afinal, para alguma coisa havemos de educar os nossos “piquenos”. Eia, lá vamos! Não mais se dirão palavrões, vivam as palavras douradinhas (isto quase se aproxima a uma publicidade da Igloo; arrisco-me a ser processada por plágio!).


Certas coisas perderão, de todo, a sua essência, a sua pureza. Os jogos de futebol, por exemplo, não mais serão os mesmos. Eu cá tenho certa dificuldade em visualizar diálogos como este, que nos esperam no futuro caso insistamos em banir os palavrões:
- Membro sexual masculino! Este filho de uma senhora que se dedica a actividades sexuais  a troco de dinheiro está a roubar a nossa equipa! Macho da cabra em versão aumentativa! Aperto-lhe os tomates!
(porque tomates ainda não é palavrão... mas concordo que não fica bem; vá lá, banir por banir, que se substituam por uma leguminosa menos sanguinolenta, tipo insultuosas ervilhinhas, ou, se se quiser fazer a coisa em grande, uns elegantes repolhos.)


Perante esta nova linguagem, que confundirá os mais velhos e levará tempo a entrar no ritmo de todos, poucos ficarão contentes. Suspeito que apenas – para além dos já citados senhores que já andam a treinar-se nisto há anos – só as mães dos árbitros ficarão satisfeitas com esta nova nomenclatura. Além disso, certos nomes sonantes não mais poderão abrir a boca – a não ser com intérpretes. Casos do Pinto da Costa, do Alberto João e do Valentim Loureiro, que terão de reformular todo o seu vocabulário, de A a Z.


Thursday, April 6, 2006

A Vida Sob Outro Prisma



Nós, os que nascemos perfeitinhos (os que me conhecem estão a rir-se às fortes gargalhadas!) nunca pensamos como será ter uma deficiência, mais ou menos incapacitante. Incapacitante sobretudo porque o mundo onde vivemos não está estruturado para responder às necessidades de quem não tem a absoluta posse de todas as suas capacidades físicas ou mentais, nem a sociedade (palavra que geralmente usamos para nos referir a um mar de gente do qual nos excluímos elegantemente, sempre que nos é conveniente, mas na qual estamos incluídos de modo fatal) vê com olhos despidos de preconceitos os deficientes, os velhinhos esclerosados, os loucos – e agora, vejam lá, não façam a tolice de pensar que meto esta gente toda no mesmo pacote, como se fossem rebuçados de fruta.


Já sei que estou a usar uma data de palavras neste texto que ninguém gosta de mencionar... Já há alguns anos que vem sendo hábito não se chamarem as coisas pelos nomes (e só isto dava uma crónica completamente diferente que fica para a próxima) por um medo extraordinário das palavras. Quase tanto como o medo de olhar para as pessoas de frente que muita gente tem.


Há algumas deficências com que me deparei mais ou menos tarde na vida.


Só pensei como seria ser surdo – é quase indesculpável que me tenha ocorrido tão tarde - quando tive uma aluna surda. Nessa altura, dei-me conta de que era preciso articular muito bem as palavras (ela sabia ler nos lábios) e nunca falar quando estava de costas ou de lado, mas sempre olhando bem de frente para a minha turma. Para a minha turma, porque ela era parte da turma, não era uma alienígena que estava ali com a qual eu me tinha de me comportar como se ela fosse de Marte. Ocasionalmente, convinha repetir as coisas, sobretudo se a via franzir o nariz e os olhos, sinal de que estava com dificuldades. Era uma aula muito bem-disposta, como todas, mas foi uma aula para a qual nunca levei música porque confesso que não sei como ela iria reagir. Claro, talvez pudesse sentir as vibrações mas achei que era insistir numa diferença entre ela e os outros alunos, puxar por uma corda provavelmente sensível.


Igualmente, nunca pensei muito na cegueira. Havia um colega cego numa das escolas onde andei. Escrevia numa máquina especial, demorava mais tempo a andar pelas escadas com a bengala, tinha livros com sinais esquisitos – Braille, obviamente, mas quem se preocupava com detalhes desses na pré-adolescência? Fora isso, era um rapaz normal e entrava em muitas actividades. Às vezes, dizíamos disparates à sua frente. Coisas de miúdos que não pensam, como: “A Ana está ali, não vês?” Ele ria-se e dizia: “Por acaso, não vejo!”  ou “Dá-me a caneta vermelha”, sendo que lhe seria impossível distinguir a vermelha da azul, como é evidente. Mas tudo era feito entre risos e nunca houve uma ocasião de atrito ou de má-fé de que me lembre.


Podia continuar a enumerar situações. Isto a propósito de um artigo que li, em que uma escritora (Nancy Mairs), que sofre de esclerose múltipla, conta como vê o seu corpo degradar-se pouco a pouco. Vai perdendo as suas capacidades físicas num processo terrivelmente rápido; é ainda jovem mas o seu corpo está a tornar-se o de uma velhinha incapacitada. Diz ela que, ainda há poucas semanas, era uma mulher de saltos altos que dava conferências. Agora, anda de cadeira de rodas (e ainda bem que estas existem, caso contrário a sua locomoção era impossível) e a primeira coisa que vê do mundo, quando está numa multidão, são rabos. Juro que, depois de ler isto, passei a ter mais cuidado com os jeans que enfio.


Há uma passagem em que ela fala da sua sexualidade. Eis uma coisa da qual ninguém fala: a sexualidade de alguém que, por um motivo ou outro, está numa cadeira de rodas, é anão ou tem sete dedos numa mão e uma giga nas costas. Como ela diz: “Não é suposto os aleijados quererem sexo, muito menos fazê-lo.” São obrigados a uma castidade que não escolheram e que é, na maior parte destas situações, contra-natura. Estas pessoas não têm as hormonas em declínio. Nem sequer estão na menopausa/andropausa. Têm um corpo um bocadinho diferente e é tudo. 


Á conta disto, dei por mim a pensar nos variadíssimos adolescentes e adultos que há à minha volta de cadeira de rodas. Ou outra incapacidade física qualquer. Será que são inevitavelmente postos de parte do ponto de vista amoroso e sexual à conta disso? Se calhar, a maior parte das vezes são. Será que mais de metade disso não é mesmo preconceito nosso? Se calhar, é. Pois é.